Fazer
de conta que não há racismo não é daltonismo, é imensa hipocrisia
João Alberto Silveira Freitas, negro de 40 anos, soldador, foi massacrado por dois seguranças, um deles policial militar fazendo bico numa loja do Carrefour em Porto Alegre. Caído ao chão, João foi espancado e esmagado até morrer asfixiado, sob a supervisão de fiscal do supermercado. É tristemente reiterada a violência praticada contra pessoas negras pelas autoridades, no caso, os “seguranças” particulares fardados.
A exclusão do exercício de direitos da população negra, vítima de discriminação ao longo da História, traz à tona a constatação do racismo estrutural vigente no Brasil. Com o racismo instala-se a inferiorização do outro, que se considera diverso, não se lhe atribuindo a possibilidade de estar “entre nós”, gozar dos mesmos direitos. É uma manifestação cultural, fruto do sistema social, político e econômico, presente no comportamento cotidiano produtor da diminuição de determinadas pessoas por causa de sua cor, orientação sexual, etnia, religião.
O
racismo em razão da cor da pele é fato inconteste na História e na realidade
social e econômica de hoje. Os brancos privilegiados, como eu, têm o dever
maior de primeiramente reconhecer a existência do racismo: dizer o contrário
perpetua a odiosa discriminação.
Durante
séculos, pretos eram tratados como coisas. Segundo Jacob Gorender, o
escravizado era propriedade privada de outro indivíduo, trabalhava sob coação
física e o produto de seu trabalho pertencia ao dono (A Escravidão Reabilitada,
São Paulo: Ática, 1991, pág. 87). Reduzido ficticiamente o homem a objeto de
propriedade de outro homem, como dizia Perdigão Malheiros, o escravo era
vendido como semovente, alugado, doado, dado em penhor, separado de seus
parentes e sua mulher, pois o “escravo não tinha família”, não se casava,
apenas se unia, sem exercer pátrio poder sobre seus filhos. A pena de açoites,
proibida pela Constituição imperial, era, todavia, prevista no artigo 60 do
Código Criminal para os escravos.
Reconhecia-se
o direito do senhor de pôr o escravo que perdera a perna a esmolar na rua,
ficando, porém, o proprietário com o resultado da caridade prestada ao preto
deficiente físico. Autorizava-se que moças pretas fossem a mando do senhor se
prostituir, ficando o resultado do comércio carnal em poder do seu dono.
O
Tribunal da Relação de Fortaleza, em 24/2/1887, decidiu que “a favor de escravo
não tem lugar o recurso de Habeas-corpus por não ser cidadão e ter restrictos
os direitos criminaes e civis...”.
O
Ministério Público de Pernambuco, em nome da escravizada Honorata, de 13 anos,
pessoa miserável, propôs ação penal contra o senhor que a estuprara. A
condenação de primeira instância foi revista, pois Honorata era miserável, mas
não pessoa.
Essa
exclusão de pretos da possibilidade de vida digna, em todos os planos,
estendeu-se no tempo, porque a Abolição, sem medidas de auxílio ao escravizado
liberto, tornou-o um miserável na sociedade competitiva.
A
desvantagem persiste. O Observatório Afro-Brasileiro, com base em estudo do
IBGE de 2000, destaca que de todo o rendimento, somando salários,
aposentadorias, programas de renda mínima e aplicações financeiras, 74,1% ficam
com os brancos. A população negra (pretos e pardos), quase 60% dos brasileiros,
tem apenas um quarto dos resultados econômicos (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2011200315.htm).
No
estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do IBGE, de 2019, há
significativa constatação: “Enquanto as mulheres receberam 78,7% do valor dos
rendimentos dos homens, em 2018, as pessoas de cor ou raça preta ou parda
receberam apenas 57,5% dos rendimentos daquelas de cor ou raça branca. O
diferencial por cor ou raça é explicado por fatores como segregação
ocupacional, menores oportunidades educacionais e recebimento de remunerações
inferiores em ocupações semelhantes” (https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf).
Em suma, as pessoas negras receberam ainda menos do que as já discriminadas
mulheres.
São
inaceitáveis as declarações do presidente da República e do vice. Disse
Bolsonaro: “Somos um povo miscigenado. Brancos, negros e índios edificaram o
corpo e espírito de um povo rico e maravilhoso. Foi a essência desse povo que
conquistou a simpatia do mundo. Contudo há quem queira destruí-la. E colocar em
seu lugar o conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão entre raças. Sempre
mascarados de lutas por direitos, igualdade ou justiça social. Tudo em busca de
poder”. O vice negou veementemente haver racismo no Brasil.
Como
diz Sueli Carneiro, o argumento da miscigenação dá suporte ao mito da
democracia racial na medida em que o intercurso sexual seria o indicativo de
nossa tolerância sexual, omitindo-se o estupro colonial (Racismo, Sexismo e
Desigualdade no Brasil, pág. 55).
Fazer de conta que não há racismo é imensa hipocrisia, especialmente quando se acusa quem aponta a verdade como destruidor da “simpatia” brasileira. Não é daltonismo, é cegueira deliberada.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Nenhum comentário:
Postar um comentário