As incógnitas de 2022 não começaram a ser decifradas na São Paulo deste ano
Nasceram, no berço do segundo turno das eleições municipais, duas lendas paralelas. A primeira assegura que o triunfo de Bruno Covas (PSDB) consolida a posição de João Doria como principal desafiante de Jair Bolsonaro na disputa pelo Planalto. A segunda, que o resultado de Guilherme Boulos (PSOL) o converte no eixo de reorganização das esquerdas para as eleições presidenciais. Nenhuma delas resiste ao crivo da análise realista.
A
lenda número um parte das falsas premissas de que Covas obteve uma vitória
avassaladora e, ainda, de que Doria cumpriu papel relevante na batalha da
prefeitura paulistana. De fato, o prefeito alcançou apenas 32% dos votos no
turno inicial, um desempenho relativamente modesto, e teve
que carregar o fardo do patrocínio de um governador com alta
rejeição na capital paulista. Já no turno final, o triunfo por margem
folgada deveu-se à geometria da disputa: desde 2015, quando escancarou-se o
estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, a esquerda perdeu as condições de
vencer eleições na cidade ou no estado de São Paulo.
Doria desponta como rival nacional do presidente graças, exclusivamente, à atual carência de alternativas fora do campo da esquerda. Essa carência, por sua vez, deriva tanto da implosão ideológica do PSDB, concluída com a própria ascensão de Doria, quanto do retumbante fracasso de Sergio Moro na sua tentativa de conquistar para o Partido da Lava Jato a maior parte do eleitorado bolsonarista.
As
fraquezas do governador paulista são evidentes. Bolsonaro venceu uma eleição
configurada como plebiscito sobre Lula. Doria chegou
à prefeitura e ao
governo estadual surfando alegremente a mesma onda do antipetismo.
O ano de 2022 será, ao que tudo indica, também um pleito plebiscitário —mas
sobre Bolsonaro. Não é fácil ver como Doria encarnaria um contraponto crível ao
seu parceiro
do passado recente. Um bolsonarismo de butique, suave e racional,
parece um frágil contraponto ao bolsonarismo legítimo, forjado nas brasas do
extremismo e do populismo.
A
lenda número dois expressa, ao menos por enquanto, apenas o desejo de Boulos.
De fato, sustenta-se numa avaliação exagerada do desempenho eleitoral do
candidato do PSOL.
Boulos
fez uma campanha inteligente, destinada a arredondar os ângulos agudos de sua
persona política. Mas, no fim das contas, foi conduzido pela correnteza de
vazante que acompanha o declínio petista. O Boulos dos 20% do primeiro turno
herdou o vasto eleitorado de esquerda tradicionalmente atraído pelo PT. Já o
dos 40% do segundo turno acrescentou o eleitorado que rejeita Covas, Doria ou
ambos. Desse ponto de vista, sua votação surpreende tanto quanto o nascer
cotidiano do sol.
O
PT chegou ao turno final de todas as eleições paulistanas desde 1988. O
solitário ponto fora da curva foi 2016. Boulos foi adotado por um eleitorado
petista decepcionado
com a candidatura do obscuro apparatchik Jilmar Tatto como o
legítimo nome do partido. Isso faz sentido, mas não tem as implicações sonhadas
por ele.
A
versão de Boulos da ideia de renovação da esquerda é o retorno a um lulismo
primordial, anterior ao pecado —isto é, ao mensalão e à Odebrecht. Seu projeto
nunca foi de ruptura: ele almeja receber das mãos de Lula as chaves do castelo
da esquerda. Mas, para isso, seria preciso brilhar fora do PT, num palco limpo,
puro e casto. No início, apostou na criação de um partido-movimento, como foi
o Podemos
espanhol. Depois, conformou-se com o atalho oferecido pelo PSOL.
A
solução não remove os obstáculos centrais. Numa ponta, Boulos depende de um
improvável gesto de renúncia de Lula para tomar posse da máquina eleitoral
petista. Na outra, sua promessa de unidade das esquerdas esbarra na sua opção
pela reiteração infinita do discurso político e econômico lulista.
As
incógnitas de 2022 não começaram a ser decifradas na São Paulo de 2020.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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