E
o que está à vista não é o Jardim do Éden, mas a guerra de todos contra todos
de ‘O Leviatã’
Onde
estarão dentro de 25 anos os meninos que vão nascer na presente década? É
cabível supor que muitas delas vão se conhecer revirando lixo em algum aterro.
Algumas estarão distribuindo drogas nos bairros ricos, a serviço de
traficantes. Muitas estarão cometendo assaltos e outras tantas estarão atrás
das grades.
Projeções
macabras fazem mal tanto à alma de quem as escreve como à de quem as lê. Mas
são úteis como alerta, sobretudo quando o alerta de que se trata diz respeito
simplesmente à necessidade de tentarmos enxergar o que está à nossa volta.
É bem singela a constatação que me leva a aborrecer os leitores com essa previsão macabra. Não, caro leitor, não vou falar da pandemia; a realidade que tenho em mente estava aqui muito antes dela. Somos, como os economistas não se cansam de repetir, um país aprisionado na chamada “armadilha da renda média”. Chegamos até com certa facilidade a uma renda per capita de US$ 10 mil por ano, mas quem afirmar que conseguiremos dobrá-la num horizonte de 20 a 30 anos o faz por sua conta e risco. E não nos esqueçamos de que esse será ainda um resultado medíocre. A renda per capita, como todos sabemos, é apenas uma fórmula, um resumo aritmético de uma infinidade de condições sociais. Neste ano da graça de 2021, há na área educacional uma experiência bem simples que o leitor pode fazer sem grande esforço. Vá a uma escola da periferia e convide a garotada a fazer alguns exercícios de tabuada. No trajeto de volta ao centro, ligue o rádio e tente se informar sobre o que o Ministério da Educação anda fazendo. Ou pelo menos adivinhar o nome do atual ministro. Seja paciente.
Se
60% ou 70% dos nossos jovens se deparam com dificuldades quase insuperáveis nas
matemáticas, nas ciências e até no simples manejo do idioma, é forçoso inferir
que, hoje, muitos deles já são fortes candidatos ao desemprego e à pobreza. Não
resvalar para o crime já é um belo feito. No mundo quase totalmente urbano e
crescentemente automatizado em que estamos entrando, cuja agricultura já quase
não cria empregos, o que está à nossa vista não é o Jardim do Éden. É muito
mais um cenário como o pintado por Thomas Hobbes em O Leviatã (1651):
uma “guerra de todos contra todos”. Mas eis aqui um possível paradoxo. Hobbes
ao menos discernia a possibilidade de alguma ordem se todos se submetessem a
uma autocracia férrea, no pressuposto de que preservar a vida, sob quaisquer
condições, seria um quadro aceitável em comparação com a guerra generalizada.
Viver sob ditaduras será, então, a nossa salvação? Dobrando ou não a nossa
anêmica renda per capita, viveremos sob uma robusta segurança garantida
pelo Estado, vale dizer, por aqueles, anjos ou bandidos, que o controlarão?
Suscitar
essa indagação no presente momento é a pior ideia que nos poderia ocorrer. Hoje
o inquilino do Planalto é simplesmente o mais despreparado dos presidentes que
nos foi dado ter desde o marechal Deodoro. Jair Bolsonaro não é apenas
iletrado, é irascível e ignorante. Deixemos de lado sua atuação no combate à
pandemia, sabidamente insensível e irresponsável, levando a extremos
inconcebíveis suas chances de sabotar o trabalho dos agentes de saúde. Se Sua
Excelência compreendesse que sua missão só pode ser sanar as cicatrizes da
eleição de 2018, buscando a convergência e a pacificação, já seria alguma
coisa. Mas, para o capitão presidente, seu papel deve ser justamente o oposto
disso. Seu objetivo é a reeleição em 2022, e salta aos olhos que ele a vê como
favas contadas, bastando-lhe para tanto manter e estimular a radicalização.
Claro,
não creio que Jair Bolsonaro tenha poderes demiúrgicos. Sozinho, não é capaz de
produzir nem o bem nem o mal em escala superlativa. Vez por outra deixa escapar
uma aspiração ditatorial, mas ditadura, sobretudo num país populoso e
diversificado como o Brasil, só existe com a colaboração das Forças Armadas, e
estas servem ao Estado, não a um caudilho qualquer – missão que começaram a
definir já nos anos 1930, sob a influência predominante do general Góes
Monteiro. Seus timoneiros nem sempre acertaram o curso, mas a identidade da
organização militar é essa.
Derrocamento
dessa ordem, nem os outros dois Poderes me parecem capazes de causar. O que
eles podem fazer – e inequivocamente insistem em fazer – é dificultar as
reformas sem as quais permaneceremos por 30 anos ou mais no sufoco da “renda
média”. Na Câmara, por exemplo, os óbices chegam ao disparate de às vezes se
tentar desfazer alguns avanços que a duras penas logramos implantar na esfera
da reforma política – entre os quais devemos destacar o fim das coligações
partidárias nas eleições legislativas. Dias atrás o novo presidente da Casa,
deputado Arthur Lira (PP-AL), manifestou a intenção de restaurar aquela
excrescência, responsável direta pela cacofonia partidária em que temos vivido.
Eis aí uma clara ilustração de que nosso problema como país ainda não é tentar enxergar mais longe. É tentar enxergar o que nos queima diariamente os olhos.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultora, é membro das academias paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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