sábado, 20 de fevereiro de 2021

José de Souza Martins* - Lobato na berlinda racial

- Valor Econômico / Eu Fim de Semana

O preconceito não está em sua obra, mas em quem o lê e o busca nas entrelinhas de seus textos

Monteiro Lobato, cada vez mais, vem sendo malhado pelos vigilantes das imprecisões conceituais do senso comum da sociedade brasileira, que em sua obra veem raça e racismo antes de ver literatura. Lobato não era racista nem sua obra o é. Tinha consciência das diferenças raciais e sociais entre nós. Ele, apenas, não era hipócrita. Sua literatura, como é próprio do campo literário, expressa nossa consciência social, aquilo que gostamos de ser e o que não gostamos.

Há racismo quando o suposto racista propositalmente desconhece e questiona na prática a humanidade do outro, quando o agride física e/ou verbalmente em nome dessa discriminação. Lobato era culturalmente negro, como foi comum nas famílias de senhores de escravos em relação a seus cativos. Escolheu a dedo a mulher negra que seria babá de seu filho, grande contadora de histórias e de causos, que lhe serviram de inspiração literária na figura humana da Tia Nastácia

Joaquim Nabuco, de uma família de senhores de escravos, em seu magistral livro sobre o abolicionismo, ele próprio um abolicionista, explica que a abolição do regime escravista promoveria “a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor”. A dominação branca e senhorial sobre o escravo fazia do escravo um agente de socialização de seu senhor. Não era nem podia ser unilateral.

As sociedades são relacionais. Essa é uma questão sociológica, não uma questão de opinião baseada num senso comum superficial e impressionista, decorrente de uma ideologia da raça que nega a negritude. Que, como já o demonstrou Roger Bastide, só é legítima quando expressa a identidade profunda do negro, seu imaginário ancestral, sua visão de mundo, seu relacionamento invisível com os orixás e os antepassados.

A leitura de motivação antirracista, que não era conhecida nos tempos em que Lobato viveu e escreveu, pode sugerir que ele, já ausente, é movido pelo intuito de estigmatizar o negro e disseminar o preconceito de raça. O preconceito está em quem o lê e em quem o busca nas entrelinhas de seus textos. Pode-se ler a Bíblia assim.

Há quem alinhe indícios e “provas” de que Lobato se filiava à orientação dos teóricos da eugenia. O interesse pelo assunto se difundiu aqui desde o fim do século XIX, como se difundiu o interesse pelo determinismo geográfico e pela degeneração decorrente do hibridismo racial. Esse interesse por disciplinas que ainda não haviam logrado reconhecimento científico foi comum.

Para legitimar a acusação de racismo a Lobato, seu interesse por eugenia tem sido apontado como prova. Eugenia foi até mesmo de interesse oficial no Brasil por motivo de saúde pública. Em 1965, havia na Prefeitura de São Paulo um Serviço de Eugenia. Realizava, gratuitamente, exames pré-nupciais para casais que quisessem, voluntariamente, ter informações de riscos hereditários de doenças que pudessem comprometer a prole que viessem a ter. Um amigo meu descobriu que era portador de sífilis.

Obras literárias podem ficar ultrapassadas, mas não necessariamente. Não é o caso das obras de Lobato, que estão querendo “consertar”. Devem ser situadas para que possam ser compreendidas na perspectiva do que ele quis dizer e não na daqueles que querem capturá-lo para que diga o que ele já disse do seu próprio modo. Lobato vive as consequências de ter virado grife.

Suas obras são atuais justamente porque a conceituação depreciativa do negro e do caipira, originários das duas diferentes escravidões que tivemos, continua em curso. Nessas obras, o mal estar do leitor, no contraste do duplo caráter de personagens como Tia Nastácia, que é a negra do coração das crianças e, ao mesmo tempo, a negra injustamente estigmatizada, desconstrói o preconceito em vez de confirmá-lo. O leitor decide.

Todo bom livro é autoexplicativo e para isso conta com a inteligência do leitor. Os livros de Lobato não são livros de autoajuda. São obras literárias. Se Lobato tivesse escrito seus livros para didaticamente explicar preconceito social e racial, para advogar em favor da causa dos que um século depois o acusariam de racista, seus livros seriam chatíssimos. Impróprios para leitura de crianças e adultos.

Seus livros são densos e claros, e persistem no interesse das novas gerações porque neles estão propostos os enigmas da complicada e dolorosa diversidade social e racial do que somos e não sabemos, que não se limita à cor da pele, pois abrange o que se esconde sob ela. No fundo, a cruel injustiça social que não permite ver-nos nem nos permite reconhecer o negro que existe no banzo dos brancos da modernidade nem o branco preconceituoso e imaginário que mutila a alma do negro e o aliena.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).

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