O
preconceito não está em sua obra, mas em quem o lê e o busca nas entrelinhas de
seus textos
Monteiro
Lobato, cada vez mais, vem sendo malhado pelos vigilantes das imprecisões
conceituais do senso comum da sociedade brasileira, que em sua obra veem raça e
racismo antes de ver literatura. Lobato não era racista nem sua obra o é. Tinha
consciência das diferenças raciais e sociais entre nós. Ele, apenas, não era
hipócrita. Sua literatura, como é próprio do campo literário, expressa nossa
consciência social, aquilo que gostamos de ser e o que não gostamos.
Há
racismo quando o suposto racista propositalmente desconhece e questiona na
prática a humanidade do outro, quando o agride física e/ou verbalmente em nome
dessa discriminação. Lobato era culturalmente negro, como foi comum nas
famílias de senhores de escravos em relação a seus cativos. Escolheu a dedo a
mulher negra que seria babá de seu filho, grande contadora de histórias e de
causos, que lhe serviram de inspiração literária na figura humana da Tia
Nastácia
Joaquim Nabuco, de uma família de senhores de escravos, em seu magistral livro sobre o abolicionismo, ele próprio um abolicionista, explica que a abolição do regime escravista promoveria “a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor”. A dominação branca e senhorial sobre o escravo fazia do escravo um agente de socialização de seu senhor. Não era nem podia ser unilateral.
As
sociedades são relacionais. Essa é uma questão sociológica, não uma questão de
opinião baseada num senso comum superficial e impressionista, decorrente de uma
ideologia da raça que nega a negritude. Que, como já o demonstrou Roger
Bastide, só é legítima quando expressa a identidade profunda do negro, seu
imaginário ancestral, sua visão de mundo, seu relacionamento invisível com os
orixás e os antepassados.
A
leitura de motivação antirracista, que não era conhecida nos tempos em que
Lobato viveu e escreveu, pode sugerir que ele, já ausente, é movido pelo
intuito de estigmatizar o negro e disseminar o preconceito de raça. O preconceito
está em quem o lê e em quem o busca nas entrelinhas de seus textos. Pode-se ler
a Bíblia assim.
Há
quem alinhe indícios e “provas” de que Lobato se filiava à orientação dos
teóricos da eugenia. O interesse pelo assunto se difundiu aqui desde o fim do século
XIX, como se difundiu o interesse pelo determinismo geográfico e pela
degeneração decorrente do hibridismo racial. Esse interesse por disciplinas que
ainda não haviam logrado reconhecimento científico foi comum.
Para
legitimar a acusação de racismo a Lobato, seu interesse por eugenia tem sido
apontado como prova. Eugenia foi até mesmo de interesse oficial no Brasil por
motivo de saúde pública. Em 1965, havia na Prefeitura de São Paulo um Serviço
de Eugenia. Realizava, gratuitamente, exames pré-nupciais para casais que
quisessem, voluntariamente, ter informações de riscos hereditários de doenças
que pudessem comprometer a prole que viessem a ter. Um amigo meu descobriu que
era portador de sífilis.
Obras
literárias podem ficar ultrapassadas, mas não necessariamente. Não é o caso das
obras de Lobato, que estão querendo “consertar”. Devem ser situadas para que
possam ser compreendidas na perspectiva do que ele quis dizer e não na daqueles
que querem capturá-lo para que diga o que ele já disse do seu próprio modo.
Lobato vive as consequências de ter virado grife.
Suas
obras são atuais justamente porque a conceituação depreciativa do negro e do
caipira, originários das duas diferentes escravidões que tivemos, continua em
curso. Nessas obras, o mal estar do leitor, no contraste do duplo caráter de
personagens como Tia Nastácia, que é a negra do coração das crianças e, ao
mesmo tempo, a negra injustamente estigmatizada, desconstrói o preconceito em
vez de confirmá-lo. O leitor decide.
Todo
bom livro é autoexplicativo e para isso conta com a inteligência do leitor. Os
livros de Lobato não são livros de autoajuda. São obras literárias. Se Lobato
tivesse escrito seus livros para didaticamente explicar preconceito social e
racial, para advogar em favor da causa dos que um século depois o acusariam de
racista, seus livros seriam chatíssimos. Impróprios para leitura de crianças e
adultos.
Seus
livros são densos e claros, e persistem no interesse das novas gerações porque
neles estão propostos os enigmas da complicada e dolorosa diversidade social e
racial do que somos e não sabemos, que não se limita à cor da pele, pois
abrange o que se esconde sob ela. No fundo, a cruel injustiça social que não
permite ver-nos nem nos permite reconhecer o negro que existe no banzo dos brancos
da modernidade nem o branco preconceituoso e imaginário que mutila a alma do
negro e o aliena.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).
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