A
China vem fazendo um grande esforço de exportação de suas vacinas, enquanto os
países ricos do Ocidente estão priorizando vacinar as suas populações. Isso
permite a Pequim ampliar sua influência no mundo
No século 20, os EUA lideraram o mundo no enfrentamento de duas ameaças globais. Venceram o nazifascismo, na Segunda Guerra Mundial, e o comunismo, na Guerra Fria, tornando-se a potência hegemônica. Quem vai liderar o mundo contra a covid-19? Esse papel vem sendo ocupado cada vez mais pela China. Uma vitória chinesa na guerra das vacinas poderá acelerar a ascensão do país neste século.
Apesar
do otimismo recente com as vacinas, só uns poucos países conseguiram, até
agora, avançar com programas amplos de vacinação. Os EUA aplicaram pouco mais
de 56 milhões de doses. A China, 40 milhões. O Reino Unido, 16 milhões. A
Índia, 9,42 milhões. Os demais estão abaixo de 7 milhões.
Faltam
vacinas e, como alertou ontem o secretário-geral da ONU, António Guterres, a
distribuição das vacinas é muito desigual. Dez países (incluindo o Brasil)
concentram 75% das doses aplicadas, e 130 países ainda não receberam nenhuma
dose.
Os
países produtores deveriam aceitar vacinar mais lentamente as suas populações
para enviar vacinas ao resto do mundo? A questão é complexa e a resposta tem
repercussões importantes.
Os
países ricos estão hoje mantendo quase exclusivamente para si as vacinas que
produzem. Os EUA embarcaram numa política de America First. Em dezembro, Donald
Trump assinou decreto que obriga as empresas que produzem no país a priorizar o
mercado interno. Joe Biden manteve isso e recusou apelos recentes dos vizinhos
México e Canadá e de aliados na Europa pela liberação de mais vacinas. A União
Europeia (UE), prejudicada por essa política americana, adotou regras para
limitar a exportação de vacinas produzidas localmente, caso o mercado europeu
não seja abastecido adequadamente.
Isso pode ser eleitoralmente eficaz nesses países, mas ameaça colocar o mundo contra o Ocidente e nos braços de China.
A
China, segundo levantamento divulgado nesta semana pelo jornal “South China
Morning Post”, de Hong Kong, exportou ao menos 46 milhões de doses, entre
vacinas prontas ou insumos para vacinas. Ou seja, mais do que aplicou
localmente. É difícil saber quantas pessoas já foram de fato vacinadas no país.
O dado é opaco, e suspeita-se que a vacinação começou bem antes de as vacinas
serem oficialmente aprovadas. Ainda assim, a China não atingiu sua meta oficial
de vacinar 50 milhões de pessoas até o fim de janeiro, algo insólito num regime
que tem verdadeira obsessão por atingir metas.
O
ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi, já se referiu às vacinas
chineses como “produtos públicos globais”. Enquanto a China fala diariamente em
distribuir vacinas, EUA e UE falam só em quantas doses asseguraram para si
mesmos. Na semana passada, Biden anunciou acordo para a compra de mais 200
milhões de doses da Pfizer e da Moderna, a serem entregues até julho. Além
disso, essas empresas, que vêm atrasando envios para outros países, teriam
concordado em antecipar entregas ao governo americano. Nesta semana, a UE
anunciou acordos de compra de mais 200 milhões de doses da Pfizer e 150 milhões
da Moderna.
Para
a China, possivelmente é mais fácil exportar as vacinas em detrimento de seus
cidadãos. Primeiro porque o país, assim como outros na Ásia, conseguiu
controlar a epidemia, tendo poucos casos e poucas mortes. Mas também o regime
chinês controla a mídia e a internet no país, e qualquer dissenso sobre a
política de usar as vacinas para ganhar influência no exterior pode rapidamente
ser abafado.
O
impacto desse esforço chinês de fornecer vacinas para o mundo é evidente. Na
América Latina, o México começou a vacinar primeiro, mas parou em 1,16 milhão
de doses devido ao atraso das remessas da Pfizer. O mesmo ocorreu com o Chile,
que também iniciou a vacinação em dezembro. As vacinas da Pfizer acabaram, mas
a vacinação acabou decolando com a chegada das doses chinesas. Tem sido assim
em todo o mundo.
Rússia
e Índia também estão se movimentando nessa guerra das vacinas, mas sem o poder
de mobilização da China. A Rússia, com pouca capacidade interna, fez acordos
com dez países para terceirizar a produção da Sputnik V, mas esses países têm
os seus gargalos, e a iniciativa ainda não decolou. A Argentina, que depende da
vacina russa, aplicou até agora pouco mais de 600 mil doses. Já a Índia tem
seus próprios obstáculos. Por ser uma democracia, o governo está sujeito à
acusação de não priorizar a própria e imensa população. Assim, Nova Déli
decidiu usar suas ainda escassas doses para ajudar os países vizinhos, numa
disputa por influência regional com a China.
O
atraso da vacinação não implica somente a continuidade da crise na saúde, com
mais casos de covid-19 e mais mortes. Tem também impacto econômico (quem se
vacinar primeiro sairá antes da crise econômica) e político. Muitos líderes
pelo mundo estão sendo criticados e se sentem ameaçados por não conseguiram a
vacina. Assim, obtê-la virou uma prioridade de sobrevivência política. Quem
tiver vacinas para fornecer pode se aproveitar desse momento de fragilidade dos
governos.
A
França percebeu essa ameaça e ontem o presidente Emmanuel Macron propôs que EUA
e UE repassem 5% de suas vacinas a países pobres. Mas o governo Biden rejeitou
a proposta e reiterou que sua prioridade por enquanto é vacinar americanos.
É
provável que, vencida a luta interna contra a covid-19, os EUA venham em
socorro do mundo. A UE também já acenou com doar vacinas compradas e não
usadas. Mas isso dificilmente acontecerá antes do fim deste ano. Até lá, é
possível que a “diplomacia da vacina” chinesa já tenha sido retribuído com
favores políticos, econômicos, comerciais e militares pelos países ajudados.
Isso é ampliação de influência.
Não
está claro se a China conseguirá manter essa política por muito tempo. Se os
EUA vacinarem toda a sua população até meados deste ano, como pretende Biden,
poderão ganhar uma vantagem competitiva importante, pois as medidas de
restrição adotadas por Pequim para conter a epidemia têm um custo econômico e
social alto.
Mas as implicações de longo prazo desse esforço chinês podem ser muitos importantes. As imagens de soldados americanos libertando a Europa na Segunda Guerra e da queda do Muro de Berlim levaram ao período de maior expansão global da democracia. Nas últimas décadas tem havido retrocessos. A cena das vacinas chinesas chegando pode ajudar Pequim a difundir o seu modelo.
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