sábado, 20 de fevereiro de 2021

Humberto Saccomandi - E se a China vencer a guerra das vacinas?

- Valor Econômico

A China vem fazendo um grande esforço de exportação de suas vacinas, enquanto os países ricos do Ocidente estão priorizando vacinar as suas populações. Isso permite a Pequim ampliar sua influência no mundo

No século 20, os EUA lideraram o mundo no enfrentamento de duas ameaças globais. Venceram o nazifascismo, na Segunda Guerra Mundial, e o comunismo, na Guerra Fria, tornando-se a potência hegemônica. Quem vai liderar o mundo contra a covid-19? Esse papel vem sendo ocupado cada vez mais pela China. Uma vitória chinesa na guerra das vacinas poderá acelerar a ascensão do país neste século.

Apesar do otimismo recente com as vacinas, só uns poucos países conseguiram, até agora, avançar com programas amplos de vacinação. Os EUA aplicaram pouco mais de 56 milhões de doses. A China, 40 milhões. O Reino Unido, 16 milhões. A Índia, 9,42 milhões. Os demais estão abaixo de 7 milhões.

Faltam vacinas e, como alertou ontem o secretário-geral da ONU, António Guterres, a distribuição das vacinas é muito desigual. Dez países (incluindo o Brasil) concentram 75% das doses aplicadas, e 130 países ainda não receberam nenhuma dose.

Os países produtores deveriam aceitar vacinar mais lentamente as suas populações para enviar vacinas ao resto do mundo? A questão é complexa e a resposta tem repercussões importantes.

Os países ricos estão hoje mantendo quase exclusivamente para si as vacinas que produzem. Os EUA embarcaram numa política de America First. Em dezembro, Donald Trump assinou decreto que obriga as empresas que produzem no país a priorizar o mercado interno. Joe Biden manteve isso e recusou apelos recentes dos vizinhos México e Canadá e de aliados na Europa pela liberação de mais vacinas. A União Europeia (UE), prejudicada por essa política americana, adotou regras para limitar a exportação de vacinas produzidas localmente, caso o mercado europeu não seja abastecido adequadamente.

Isso pode ser eleitoralmente eficaz nesses países, mas ameaça colocar o mundo contra o Ocidente e nos braços de China.

A China, segundo levantamento divulgado nesta semana pelo jornal “South China Morning Post”, de Hong Kong, exportou ao menos 46 milhões de doses, entre vacinas prontas ou insumos para vacinas. Ou seja, mais do que aplicou localmente. É difícil saber quantas pessoas já foram de fato vacinadas no país. O dado é opaco, e suspeita-se que a vacinação começou bem antes de as vacinas serem oficialmente aprovadas. Ainda assim, a China não atingiu sua meta oficial de vacinar 50 milhões de pessoas até o fim de janeiro, algo insólito num regime que tem verdadeira obsessão por atingir metas.

O ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi, já se referiu às vacinas chineses como “produtos públicos globais”. Enquanto a China fala diariamente em distribuir vacinas, EUA e UE falam só em quantas doses asseguraram para si mesmos. Na semana passada, Biden anunciou acordo para a compra de mais 200 milhões de doses da Pfizer e da Moderna, a serem entregues até julho. Além disso, essas empresas, que vêm atrasando envios para outros países, teriam concordado em antecipar entregas ao governo americano. Nesta semana, a UE anunciou acordos de compra de mais 200 milhões de doses da Pfizer e 150 milhões da Moderna.

Para a China, possivelmente é mais fácil exportar as vacinas em detrimento de seus cidadãos. Primeiro porque o país, assim como outros na Ásia, conseguiu controlar a epidemia, tendo poucos casos e poucas mortes. Mas também o regime chinês controla a mídia e a internet no país, e qualquer dissenso sobre a política de usar as vacinas para ganhar influência no exterior pode rapidamente ser abafado.

O impacto desse esforço chinês de fornecer vacinas para o mundo é evidente. Na América Latina, o México começou a vacinar primeiro, mas parou em 1,16 milhão de doses devido ao atraso das remessas da Pfizer. O mesmo ocorreu com o Chile, que também iniciou a vacinação em dezembro. As vacinas da Pfizer acabaram, mas a vacinação acabou decolando com a chegada das doses chinesas. Tem sido assim em todo o mundo.

Rússia e Índia também estão se movimentando nessa guerra das vacinas, mas sem o poder de mobilização da China. A Rússia, com pouca capacidade interna, fez acordos com dez países para terceirizar a produção da Sputnik V, mas esses países têm os seus gargalos, e a iniciativa ainda não decolou. A Argentina, que depende da vacina russa, aplicou até agora pouco mais de 600 mil doses. Já a Índia tem seus próprios obstáculos. Por ser uma democracia, o governo está sujeito à acusação de não priorizar a própria e imensa população. Assim, Nova Déli decidiu usar suas ainda escassas doses para ajudar os países vizinhos, numa disputa por influência regional com a China.

O atraso da vacinação não implica somente a continuidade da crise na saúde, com mais casos de covid-19 e mais mortes. Tem também impacto econômico (quem se vacinar primeiro sairá antes da crise econômica) e político. Muitos líderes pelo mundo estão sendo criticados e se sentem ameaçados por não conseguiram a vacina. Assim, obtê-la virou uma prioridade de sobrevivência política. Quem tiver vacinas para fornecer pode se aproveitar desse momento de fragilidade dos governos.

A França percebeu essa ameaça e ontem o presidente Emmanuel Macron propôs que EUA e UE repassem 5% de suas vacinas a países pobres. Mas o governo Biden rejeitou a proposta e reiterou que sua prioridade por enquanto é vacinar americanos.

É provável que, vencida a luta interna contra a covid-19, os EUA venham em socorro do mundo. A UE também já acenou com doar vacinas compradas e não usadas. Mas isso dificilmente acontecerá antes do fim deste ano. Até lá, é possível que a “diplomacia da vacina” chinesa já tenha sido retribuído com favores políticos, econômicos, comerciais e militares pelos países ajudados. Isso é ampliação de influência.

Não está claro se a China conseguirá manter essa política por muito tempo. Se os EUA vacinarem toda a sua população até meados deste ano, como pretende Biden, poderão ganhar uma vantagem competitiva importante, pois as medidas de restrição adotadas por Pequim para conter a epidemia têm um custo econômico e social alto.

Mas as implicações de longo prazo desse esforço chinês podem ser muitos importantes. As imagens de soldados americanos libertando a Europa na Segunda Guerra e da queda do Muro de Berlim levaram ao período de maior expansão global da democracia. Nas últimas décadas tem havido retrocessos. A cena das vacinas chinesas chegando pode ajudar Pequim a difundir o seu modelo.

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