A
vida dos cidadãos não é levada em conta. A sociedade clama por mudanças
A
sociedade clama por mudanças.
A
pandemia invadiu a vida das pessoas de forma nunca vista, introduzindo a doença
e o medo da morte no seio de cada família. Diante de tão aterrorizante
realidade, a população vê os países mais avançados se vacinando e abrindo
caminho para o futuro, enquanto os responsáveis pelo governo federal se
comprazem com malabarismos da pior qualidade, num cenário que, não fosse
trágico, seria cômico. Os discursos são tão disparatados e anacrônicos que sua
mera listagem, além de longa, seria enfadonha.
Em
todo caso, da “gripezinha” à luta contra a vacina “chinesa”, passando pelo dito
“tratamento precoce”, uma espécie de poção mágica para incautos, o espetáculo
oferecido à Nação é de completa irresponsabilidade. Pessoas adoecendo e
morrendo, e a única preocupação dos políticos parece ser a eleição presidencial
de 2022. E até lá quantos padecerão?
A
crise fiscal se avoluma, os gastos não são cortados, os privilegiados de sempre
guardam os seus benefícios e os estamentos estatais defendem os “seus” direitos
– aliás, só os deles. Enquanto isso, o País definha economicamente, com alto
desemprego, milhões na miséria, à beira da sobrevivência, e a expectativa de
vida cai.
O
atual governo foi eleito com uma agenda liberal, que, dizia-se, seria conduzida
com rigor. No primeiro ano de mandato, nada foi feito, salvo uma reforma da
Previdência amplamente preparada pelo governo anterior. No segundo ano, a
desculpa foi a pandemia, contra a qual nada foi levado a cabo. E neste começo
do terceiro volta o palavrório usual com a reforma da economia e do Estado.
Curiosamente, temos uma situação paradoxal, pois a esquerda retoma a luta contra o “neoliberalismo”, contra a responsabilidade fiscal, sem que liberalismo nem contenção de gastos se tenham realizado. O pior serviço do atual governo consiste em ter matado a ideia liberal sem que ela tenha sequer existido praticamente.
Os
partidos e os políticos, por sua vez, em vez de vocalizarem os anseios da
sociedade, estão mais preocupados com suas brigas intestinas, como se estas
fossem o mais importante problema da República. Talvez o sejam em sua conotação
negativa, ao expressarem o desmonte da representação política. A sociedade não
se reconhece em seus representantes. É como se os parlamentares e os partidos
vivessem num mundo à parte, só deles, povoado por emendas, cargos e interesses
particulares dos mais diferentes tipos, dotados de vida própria. A vida dos
cidadãos não é levada em consideração, enquanto esses seres inanimados guardam
toda a sua vitalidade. Raras, infelizmente, são as exceções.
As
disputas pela presidência da Câmara dos Deputados e do Senado, com suas
intrigas e traições, exibiram uma cena parlamentar e partidária desconectada da
realidade. O governo procurou eleger os seus e desestruturar as oposições, os
parlamentares negociavam individualmente ou coletivamente os seus votos,
enquanto o País seguia à deriva. A sociedade, alarmada, observou um processo
longínquo, distante dos seus afazeres cotidianos de sobrevivência e de luta
pela vida. Há um crescente estranhamento entre a sociedade e a sua
representação, tendo como resultado o enfraquecimento das instituições
representativas.
A
democracia vive na medida em que suas instituições sejam fortes. No momento em
que os parlamentares e os eleitos em geral, no Executivo e no Legislativo,
apresentam, sem nenhum pudor, o jogo do “toma lá dá cá”, sem que dele se siga
nenhum projeto ou realização coletiva, numa espécie de tributo que o vício
poderia pagar à virtude, ocorre a debacle da representação política. A política
esgotar-se-ia nessa negociação, à qual se seguiriam outras, num jogo sem fim.
Os
partidos perdem o seu valor, o seu significado. A sociedade não se vê naqueles
que deveriam ser os seus representantes. A “velha política”, tão abominada nas
últimas eleições presidenciais, bandeira do então candidato Bolsonaro, é agora
conduzida por “novos” e “velhos” políticos, incluídos militares que se
apresentavam como avessos a tais práticas. A contradição é manifesta.
Se
o divórcio entre a representação política e a sociedade se acentua, se a
política renuncia a valores morais e a noções de bem coletivo, se instituições
e estamentos do Estado não tornam viável o bem público, se os interesses mais
comezinhos tomam a cena pública, o caminho está aberto para soluções
demagógicas e autoritárias. Se os partidos e as instituições nada valem,
líderes procurarão estabelecer contato direto com uma sociedade aflita e
desamparada.
Cria-se
um caldo de cultura propício à emergência de “salvadores” da pátria, daqueles
mesmos que tudo fazem para corroer e desestruturar a democracia. O discurso
passa a ser sem mediações entre o líder e a sociedade, vendendo qualquer
narrativa, contanto que ela pegue, suscitando a adesão, por mais mentirosa que
seja. E aí de nada adianta dizer que foi o resultado das urnas, pois eleições
sozinhas, sem instituições democráticas, podem ser também a via para o
autoritarismo.
*Professor de filosofia na UFGRS.
Nenhum comentário:
Postar um comentário