Depois
do cavalo de pau de Rodrigo Maia em adesão (para mim, surpreendente) ao modo
João Dória de fazer política - o qual pode até ser chamado de “extremismo de
centro” - outros políticos do centro democrático começaram a seguir, ou ameaçar
seguir, essa tocha de insensatez que pode conduzi-los a um haraquiri político.
Estava a centímetros de arriar o rei diante desse xadrez político de baixa
qualidade quando escutei duas frases de Bethânia achadas agora na rede, como
memória da live, podendo citá-las sem risco de ser infiel. Uma expressa um
desejo de abelha-rainha: "A força dos meus sonhos é tão forte que de tudo renasce
exaltação e nunca minhas mãos ficam vazias.". Outra, uma vontade
prudente, mediada pela necessidade, com a qual a realeza revela empatia para
com quem trabalha e vê entes queridos morrerem como formigas: "Quero
vacina, respeito, verdade e misericórdia".
Acordei neste domingo com a sensação de que a falta de atores políticos capazes de construir uma vontade agregada e prudente está deixando a maioria dos brasileiros sem sonhos fortes e de mãos vazias, em vias de exasperar, por não verem o que exaltar. Ouvi, no entanto, numa entrevista à CNN, concedida dias atrás, pelo jovem governador gaúcho, entre outras ideias que me pareceram lúcidas, a seguinte frase: “eu acredito numa política que efetivamente seja mais sobre cicatrizar do que sobre abrir novas feridas”. Percebi um zum-zum na testa que abriu uma fresta no desalento. Achei não só essa frase, como toda a entrevista, merecedora de um comentário dizendo sim. Mas o dever da análise impunha também considerar as inúmeras razões para dizer não ao que se tem falado e feito no campo onde o governador se move. Só que a algaravia é tão intensa que entontece e não indica por onde começar. Uma segunda leitura, da coluna de hoje da jornalista Eliane Cantanhede, no Estadão, deu-me mote a uma crítica menos apegada às jogadas de varejo do xadrez político e mais voltada a interpretações que se faz sobre elas. Achei, numa interpelação à visão da respeitada colunista, o tema que faltava ontem.
Cantanhede
aventa a hipótese de a empresária Luiza Trajano vir a ser uma alternativa
eleitoral, diante da virtual falência de uma frente política do centro liberal-democrático,
que estaria se derretendo por adesismo ao governo de Bolsonaro. A hipótese teria um indisfarçável sentido de
retomar o tema da alternativa à “velha política”, que teve forte apelo nas
eleições gerais de 2018 e foi arquivado pelos eleitores nas municipais de 2020.
Na falta da Lava Jato e diante de Sergio Moro passar de aspirante à política a
candidato a réu, seria como buscar outro herói (no caso, heroína) para
enfrentar Bolsonaro, alijando a “política dos políticos” do segundo turno. Para
sermos justos com Trajano, é preciso dizer que se ela seria tão outsider na
política quanto Moro tem as vantagens, em relação ao ex-juiz, de já ter história,
como empresária e ativista do grupo Mulheres do Brasil, de contraponto
ao extremismo vigente, fazendo oposição afirmativa ao sexismo e ao racismo e de
liderar um arrojado e muito bem vindo projeto de intervenção civil em favor da
causa da vacinação em massa, que é o principal desafio social do momento. Pauta
irrepreensível, cujo apelo agregador provém do fato de ela não ter, até aqui,
pretensão político-partidária. Se passar a tê-la, como teve Moro, arrisca-se a
perder sentido. A quem se ocupa de política com responsabilidade pública cabe
apurar se a hipótese aventureira de substituir o juiz como salvação do país,
contra a política, tem anuência da própria Trajano, ou não. No caso de não ter,
como parece mais provável, muito bem fará quem a ela se associar. Havendo fogo
sob essa fumaça, é preciso que políticos e partidos responsáveis providenciem o
antídoto para que esse recurso ao amadorismo político não vingue, como ideal de
solução de crises tão complexas como as do Brasil atual. Obtém-se o antidoto por
palavras e gestos de moderação e agregação, no campo do centro liberal
democrático e na esquerda. Mas no dito centro, abundancia retórica de palavras
unitárias já divide espaço com outras que as negam. E preocupa a escassez de gestos concretos. As
razões disso precisam ficar claras.
ACM
Neto pode perder a batalha interna que trava no DEM para resistir ao governo pela
razão oposta à que Cantanhede aponta. Em vez de adesismo, já se pode perceber -
em suas mais recentes declarações sobre a indicação, por um outro partido, de
um liderado seu para o ministério da Cidadania - imprudência quase análoga às
de Maia e Dória. Mesmo estando o ato do governo cercado de evidências de que se
trata de estratégia intencional para colar no presidente do DEM a etiqueta de
governista e, com isso, consumar uma implosão do partido, o alvejado cedeu à
retórica voluntarista, diante de uma imprensa ávida por confrontos na pequena
política. O modo como se expressou, cobrando lealdade política e pessoal a um
quadro de outro partido, torna irresistível, para seus adversários, acionar a
memória do lado mandonista e informal da complexa e contraditória atitude
política do seu avô. Esse lado nega a imagem pública construída pelo neto há mais
de uma década. É o que indica até aqui a exoneração, da Prefeitura de Salvador,
de um quadro ligado ao ministro indicado, João Roma. Envolve na briga uma
prefeitura que já não mais dirige e num contexto social crítico, em que ela precisa
manter interlocução com o governo federal. Traz instabilidade, simultaneamente,
à institucionalidade federativa e ao combate à pandemia. Tenho me colocado
sempre contra visões elitistas, travestidas de progressismo, que desprezam ou
demonizam a pequena política. Ela tem papel importante no mundo real, mas Antônio
Gramsci é aqui referência incontornável: é grande política reduzir tudo à
pequena política. Esse tipo de grande política desertifica a política positiva.
ACM Neto ainda tem crédito para se supor que tenha sido um escorregão hepático.
Cantanhede
está vendo "implosão" no PSDB também. Será que é isso o que ocorre
mesmo, ou ali está se procurando evitar a implosão, um risco provocado por quem
a articulista considera ser a vítima, no caso o governador de São Paulo? Até onde posso enxergar, essa discussão está
ligada à situação que abordei em artigo nessa coluna, em 12.12.2020 (“Em busca de um centro: uma eleição e dois scripts”). Da experiência promissora das eleições de 2020 surgiram
duas possibilidades de construção de alianças no chamado centro político.
A primeira seguiria uma rota a partir de São Paulo e levaria a
atrair a centro-direita para uma aliança ao centro, sob hegemonia do PSDB, para
um confronto desde já com Bolsonaro, sendo a possibilidade de incluir a
esquerda transferida para o segundo turno, a depender de quem lá chegasse. A
segunda possibilidade, que teve êxito em várias capitais, a de uma frente mais
ampla se formar já para o primeiro turno, aproximando setores da centro-direita
e da centro-esquerda, tendo como âncora uma agenda positiva capaz de envolver o
PSDB, outras partes da oposição e setores que se declaravam independentes do
governo, como DEM e MDB, sem reconhecimento prévio de hegemonia de qualquer
partido. O então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, parecia talhado a ser o
principal articulador dessa segunda rota, enquanto o governador de São Paulo
seria o da primeira.
O modo como se constituiu a frente em prol da candidatura de Baleia
Rossi à presidência da Câmara atou, àquela disputa, o destino de uma eventual
aliança eleitoral e o modo como Maia reagiu à derrota fê-la transbordar os
muros da Câmara e comprometer a segunda possibilidade de rota na arena
interpartidária. Recepcionando, no PSDB, o articulador derrotado da segunda
rota, João Dória imaginou consolidar, definitivamente, a rota São Paulo - Brasil.
Esqueceu de avisar a cozinha, onde a outra rota estava sendo considerada, como
demonstram a entrevista do governador gaúcho e a decisão, da Executiva do
partido, de prorrogar, por um ano, o mandato do presidente que Doria queria
substituir. Evidentemente, como no caso do DEM, o dedo do palácio comparece
para incendiar a luta interna, mas quem a provocou é questão em aberto e não
uma premissa.
Resta, ainda, falar do MDB e o farei de modo sucinto porque nesse
partido não há, por enquanto, uma crise interna com as proporções das que afetam
DEM e PSDB. O deputado Baleia Rossi, que se conduziu com dignidade na disputa
da Câmara e mantém, após a derrota, um também digno silêncio, precisará mesmo
submergir para tentar se manter, ou ao seu grupo, no comando nacional do
partido. Terá, para isso, que refratar o duplo ataque que lhe aguarda. De um
lado, o do palácio, que quer tornar invertebrados os três principais partidos
do centro de modo a ampliar o seu centrão. De outro, o do hábil senador Renan
Calheiros, que ensaia fazer da posição de líder do partido no Senado um posto articulador
para levá-lo a mover guerrilhas tão verbalmente imoderadas quanto pragmaticamente
pontuais contra o governo, como se o MDB pudesse ser uma espécie de centrão do
B.
É
logico que está em curso, por parte do governo, uma operação para rachar os
três partidos, que estão entre os mais institucionalizados do país. Operação
que, ademais dos seus objetivos táticos, é coerente com uma tradição estatal brasileira
de modelar partidos ao gosto dos interesses do Executivo e com uma estratégia
mais geral, do governo atual, de esgarçar e, no limite, destruir instituições.
Tem ficado evidente, também, a vulnerabilidade desses partidos a esse tipo de
investida, seja por uma crescente dependência de fontes de financiamento
orçamentárias (fenômeno estrutural dos sistemas políticos atuais e não uma
jaboticaba brasileira), seja por uma cultura personalista que os afeta (embora
não os defina, nem seja singularidade deles, pois se espalha por toda a
sociedade e tem também uma incidência internacional), seja por redes de clientela que a eles se vinculam
(embora a vida desses partidos não se resuma a elas), seja, ainda, por
particularidades regionais próprias da forma federativa do Estado brasileiro e
por aí vai. As duas coisas (a investida do governo e a vulnerabilidade dos
partidos) são facilmente verificáveis.
O
que é obscuro na argumentação - aparentemente límpida, em sua simplicidade - de
que o centro político cava sua própria sepultura ao se comportar mal, é o
motivo pelo qual deveríamos achar que a estratégia do governo é meramente uma
ação beneficiária da má qualidade de uma elite política formada por políticos
“menores”, em especial de uma inépcia essencial do centro político. Sem colocar
aqui em questão essa qualidade geral, ou a inépcia do centro atual, penso que se
toma como causa o que é mais consequência ligada a uma baixa capacidade de certos
atores do sistema em dar resposta a desafios. As crises internas do DEM e do
PSDB são análogas, mas com raízes distintas. A do DEM resulta de uma iniciativa
do palácio, que não está sendo refratada a contento. A do PSDB, de uma afoiteza
endógena, aproveitada pelo palácio. Mas,
varejos à parte, a baixa capacidade de resposta afeta os voluntaristas, mais do
que os políticos praticantes da moderação. Daí a preocupação prioritária de
extremistas adversários do sistema político de alvejarem lideranças e
instituições partidárias ligadas ao centro, onde a moderação é mais frequente.
De
todo o modo, o extermínio do centro é estratégia de governo e não cabe fazer,
de seus alvos vulneráveis, sujeitos de uma oração cujo sentido é uma sentença
acusatória que reitera, pela direita, o diagnóstico de “falência da velha
política”, por vezes corroborado, na ponta esquerda, pelo de “crise da
representação”. Depois de render homenagens, nem sempre sinceras, a políticos
que, por terem sido derrotados no jogo pelo seu voluntarismo, tornam-se
resíduos funcionais ao argumento, o arremate final dessa argumentação contra
políticos moderados resilientes é que, diante do seu adesismo, o jeito é Trajano,
mora? Aqui se conclui o diálogo com Cantanhede e começa a análise de um sentimento
difuso de contestação da política, que, a meu ver, data vênia, a sua análise
subestima.
Extremismo
tornou-se consenso negativo tanto na sociedade civil, como no âmbito das
instituições. Mesmo se a Câmara de Lira se converter em turba, arrancar
recursos de poder para reeleição de deputados e dividir o país em torno de
costumes, dificilmente dirá tudo bem, diante de arroubos extremistas contra o
sistema democrático. Embora não se saiba até que ponto o eleitorado
corresponderá, em 2022, a esse feliz consenso negativo, as urnas de 2020 também
deixaram claro um recado por moderação, agora reforçado pelo exemplo de
processo político pacificador que deu a vitória a Biden, nos EUA. Com isso a roda da fortuna girou
favoravelmente à elite política e o “lugar de fala” que ela ocupou, no pós-2018,
passou a ser cobiçado. Agora todo mundo quer ser moderado, até Bolsonaro.
A
acusação de adesismo ao governo Bolsonaro é a tocha acesa por adversários da
política dos políticos, deserdados pelo acordo do governo com o centrão, para
desalojar políticos moderados da posição relativamente confortável que vinham
ocupando. Podiam, desde já, dialogar com a esquerda em torno de protocolos
civilizados e, mais adiante, atrair parte do centrão a uma ampla frente democrática,
num segundo turno. A imputação de adesismo cumpre o papel centrífugo que
acusações de corrupção cumpriram no pre-2018. Em vez de lavar a política,
trata-se agora de incendiá-la de novo. A aposta parece ser que ocorrerá o que
ocorreu no clima de lacração prévio àquele pleito, ou seja, políticos em geral
seguirão atras da tocha, disputando quem é oposição mais firme, num
salve-se-quem-puder, procrastinando as pautas unitárias que realmente importam,
nesse momento. Essas pautas poderiam ser, então, empalmadas por algum outsider
adversário, tanto dos políticos sem rumo, quanto do presidente extremista. O
problema é que, enquanto a tocha é seguida, o governo se expande, ocupa o
centro, tenta roubar os discursos da vacina, do auxílio social e até o da conciliação.
Daqui a pouco será confundido com a
misericórdia.
Especula-se,
nas últimas horas, que Luciano Huck, dobrando a aposta de Dória e Maia, poderia
ir até a esquerda tourear com Ciro, Lula e Boulos. Flavio Dino, se o está
atraindo, faz o jogo certo de quem está na esquerda, tentando levar gente do
centro para oxigenar seus ares e torná-la mais competitiva. O jogo do centro é
outro e não dá nem pra fazer cócegas em ninguém se não for capaz de unir seus
quadros e ainda dividir a direita, costeando o alambrado do centrão. Se uma
direita governista é difícil de ser vencida, mesmo quando dividida, imaginem se
estiver unida, sob uma hegemonia antidemocrática!
Numa
democracia, no entanto, a política dos políticos não chega nunca a ser
suprimida e, em geral, após uma faxina, renasce como unha. Foi o que começou a
ocorrer nas eleições de 2020. Sobreveio, para o dito centro, um começo de 2021
adverso, pela combinação de assédios de fora e erros em casa. O impulso das
urnas do ano passado pode ser retomado se esse agrupamento informe tiver compromisso
social para priorizar o combate à pandemia e o auxílio aos mais pobres,
responsabilidade para entrar no debate econômico, firmeza na defesa da
Constituição, instinto de preservação para não incendiar suas instituições
partidárias e prudência política para pacificar os ânimos. São muitos “ses”, o
que torna o protagonismo do centro uma hipótese pouco provável no horizonte
atual. Sem a concretização de, ao menos, parte dos “ses”, será difícil uma
aliança nesse campo tomar forma política e atrair um candidato competitivo –
como Luiz Mandetta, por exemplo - para, na hora certa, chamar o eleitorado. Mesmo
cumprindo seu dever de casa, até aqui mal encaminhado, não é certo que esse
pretenso campo político consiga protagonismo. Mas se parar de bater cabeça terá
ao menos como marchar razoavelmente unido para uma outra solução democrática,
mesmo exógena, para tentar derrotar o extremismo, que deve piorar muito, se
houver reeleição. Pela consideração dessas distintas hipóteses (endógena e
exógena), Mandetta será o foco da coluna, na próxima semana. E na seguinte, a
esquerda.
*Cientista político e professor da UFBa.
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