Mercenários?
Há muitos por lá. Subornos? Ora... Preocupados com o bem público? Poucos
Já
passou a hora de pôr um fim à sua presença neste lugar que perdeu a honra pelo
desprezo de todas as virtudes, contaminado por todos os vícios. Os senhores não
passam de uma facção inimiga de todo bom governo, pois formam um bando de
miseráveis mercenários. Seu gosto é como o de Esaú: vender seu país por um
guisado e, como Judas, trair Deus por moedas. Existe uma única virtude entre os
senhores e algum vício que não possuam? (...). Qual dos senhores deixou de
trocar a consciência por subornos? Existiria um homem entre os senhores
preocupado com o bem da Comunidade? Prostitutas sórdidas! Os senhores não
infectaram este lugar sagrado e fizeram do templo divino um covil de ladrões
por seus princípios imorais e práticas iníquas? Os senhores se tornaram odiosos
para toda a nação pois foram postos aqui, pelo povo, para reparar suas queixas,
mas se tornaram a fonte da maior queixa. Logo, o seu país apela-me para limpar
esta estrebaria de Augias, pondo um ponto final nos procedimentos iníquos desta
Assembleia. Com ajuda de Deus e a força que ele me deu, efetivo tal missão.
Ordeno, com perigo das suas vidas, que os senhores saiam imediatamente deste
lugar. Escravos venais, vão embora! Em nome de Deus, vão!
Deixei
sem aspas o trecho acima para que os informados sobre a história dos
parlamentos tenham o prazer melancólico de identificar semelhanças entre o que
teria ocorrido na Inglaterra do Rump Parliament e os dias de hoje, no Brasil.
Cromwell, a quem se atribui a fala mencionada, se estivesse na porta do
Congresso brasileiro, informado das manobras para tornar os parlamentares
isentos das leis que eles mesmos devem manter, diria as mesmas palavras do
parágrafo anterior. Nada falta para a similaridade entre a situação parlamentar
na terra de Shakespeare (“existe algo podre no reino...”) e o Brasil de agora.
Mercenários? Existem muitos no Parlamento nacional. Praticantes de subornos? Ora... Preocupados com o bem público? Poucos.
Naqueles
dias como hoje, o ambiente onde são feitas as leis ficou sujo como as
estrebarias de Augias. Naquele espaço a equidade é expulsa dia a dia. Falta
apenas a figura do ditador que expulsa, relho na mão, deputados que o apoiaram
a preço de ouro e dos quais ele conhece a venalidade. Ele conhece seus
interesses financeiros, próprios de mercadores de leis. A diferença fica por
conta do personagem que fecha o Parlamento.
Cromwell
assume, pelo menos de fachada, a ética protestante em seu florescer. Aqui, com
muita probabilidade, o chicote nas costas dos deputados será movido por alguém
sem ética ou respeito pelo bem público.
Elias
Canetti em página memorável enuncia que, ao contrário da vida social marcada
pela guerra de todos contra todos, no Parlamento “não deve haver mais mortos.
Esta intenção é expressa (...) na imunidade parlamentar, que tem um duplo
aspecto: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus
pares”. O sistema democrático funciona se a imunidade for garantida. O
Parlamento tem como alvo criar, no meio da batalha perene da sociedade, um
espaço de paz e segurança. O Legislativo é sagrado porque nele reside a única
esperança de algum diálogo, algum respeito. Nele, o instrumento relevante é o
voto dos representantes. As cédulas de votação (hoje, o painel eletrônico)
atenuam a morte coletiva. Quem usa de modo sacrílego tais cédulas “confessa
suas próprias sangrentas intenções”. Assim, cada voto pode gerar vida ou trazer
morte.
“O
deputado é um eleitor concentrado”, resume Canetti. Se o Legislativo age em
causa própria, perverte o sistema das cédulas. O Parlamento é feito para trazer
esperança ao coletivo. Se legisla em próprio benefício, sua existência perde a
razão de ser. Se decidem sem ouvir os representados, os parlamentares abreviam
sua própria extinção. Tomo o inimigo do sistema parlamentar, Carl Schmitt. Se
por várias razões “os representantes podem decidir em vez do povo, com certeza
um representante único poderia decidir em nome de todo o povo. Sem deixar de
ser democrático, o argumento justifica um antiparlamentarismo”. Tal senda
prepara a ditadura do “representante único”.
A
humanidade sofre ameaça inédita e no Brasil os campos da morte se espalham sem
controle. Seria preciso esperar do Parlamento maior zelo pela vida coletiva.
Não é o que vemos.
Em
clara parceria com um presidente isento de prudência e de respeito aos
governados, o Congresso coloca antes e acima de medidas para preservar a saúde
pública os seus privilégios e prerrogativas. E usa como desculpa a prisão de um
deputado que ousa exigir o fechamento do STF e do próprio Congresso, a retomada
do nefasto Ato Institucional número 5.
Quos
Deus vult perdere prius dementat – aqueles a quem o divino quer
desgraçar, primeiro enlouquece. Talvez seja esta a pandemia maior nas
instituições brasileiras, a começar com os frangalhos do Poder Legislativo. E
para tal desgraça não existe vacina, salvo a repulsa máxima da cidadania que
ainda resta em nossa pátria.
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