Ministros
pelejam no STF. As pessoas morrem. Lula volta à cena. As pessoas morrem.
Bolsonaro começa a usar máscara, e seu filho quer que as pessoas enfiem a
máscara no rabo. As pessoas morrem. Jornalistas discutem animadamente a eleição
do ano que vem. Recorde de mortos: 2.349.
Fui
convidado para, mais uma vez, debater a resposta nacional à pandemia. Continuo
tentando entender, embora seja para mim bastante clara a razão principal do
fracasso. Não posso chamá-la delicadamente de falta de liderança. Isso implicaria
omissão ou apenas incapacidade do presidente. Mas ele é obtusamente
negacionista. Não é um líder que falta, mas que joga contra.
Já
avancei na minha análise, procurando entender por que as pessoas, sobretudo as
mais pobres, não seguem as medidas de segurança na pandemia. Mencionei suas
condições precárias de habitação e transporte e o fato de que os políticos não
se esforçam em criar condições que amenizem a aspereza do cotidiano de sua
gente.
Algumas
coisas ficam de fora dessa análise. Num bairro próspero do Rio, como o Leblon,
há muita gente que despreza ostensivamente as medidas de segurança. E aí, como
preencher essa lacuna?
Sou
apenas um intérprete amador. Felizmente, tenho comigo na quarentena a bela
edição da Nova Aguilar intitulada “Intérpretes do Brasil”. Eles merecem mais do
que três volumes comentados por grandes intelectuais. Merecem um eterno
reconhecimento por ter arrancado um sentido deste caótico país nascido nos
trópicos.
Mergulho nos grandes textos quase toda noite. Mesmo assim, como o domador do poema de Drummond, vivo roído por dúvidas. Sérgio Buarque de Holanda fala de uma certa relutância à autoridade. Paulo Prado menciona, no seu “Retrato do Brasil”, um triste conformismo.
Resolvi
trabalhar com as duas ideias aparentemente contraditórias. Talvez exista uma
resistência à autoridade quando se trata de usufruir a liberdade pessoal e um
grande conformismo quando se trata de decisões tomadas lá em cima na esfera do
governo.
Isso
me ajuda a ajustar num mesmo saco a recusa às medidas de segurança e a
incapacidade de se revoltar diante de uma política desastrosa, como fizeram os
paraguaios.
Também
não é uma explicação definitiva, pois ficariam fora dela as grandes
manifestações de 2013, que sacudiram a ideia do conformismo brasileiro.
Talvez
exista uma ampla compreensão do fracasso do governo, inibida pelo medo de
aglomerar. Somos o país onde mais se morre no momento, um brasileiro para
quatro vítimas letais do coronavírus no planeta.
Esta
reviravolta judicial que trouxe Lula de novo à cena da campanha presidencial
não me surpreendeu totalmente, exceto pelo timing. Esperava algo um pouco mais
distante, no início de 2022.
Nestas
noites de pandemia em que, às vezes, é preciso ler um pouco de Borges, já
destaquei uma frase dele: os argentinos são indivíduos, mas não cidadãos.
Achei
algo interessante para quase todo o mundo latino, mas comecei também a me
perguntar se não somos a Argentina amanhã.
Refiro-me
também às grandes forças políticas com traços caudilhescos, como o peronismo,
que submergem em certos momentos, mas sempre retomam com força ao coração da
maioria.
Às
vezes achava que o processo brasileiro de retomada do petismo de Lula seria um
pouco mais lento, porque aqui foram mais profundas do que no peronismo as
marcas da corrupção.
Acontece
que, comparando os adversários Macri e Bolsonaro, certamente as características
grotescas do atual presidente do Brasil funcionaram como um atalho para
abreviar o tempo histórico.
Elas
são tão decisivas que podem até mudar essa suposicão de que em 2022 o
adversário de Lula seja mesmo Bolsonaro.
São consideracões de um amador. Espero que não me mandem enfiá-las naquele lugar onde já há lata de leite condensado e, agora, máscaras, de forma de que não há espaço disponível.
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