Valor Econômico
Precisamos reduzir a dependência de
dinheiro na política
Era uma vez um jumento que, cansado de
carregar pedras ladeira acima, se rebelou e deu no pé. Pegou a estrada que
levava à cidade em busca de uma vida melhor, repleta de comida, diversão e
arte. No caminho, encontrou um cachorro, uma galinha e uma gata; todos eles
fartos dos maus tratos ou da exploração de seus donos.
À medida em que caminhavam e compartilhavam
seus planos para o futuro, contudo, foram ficando explícitas as diferenças de
perspectivas de cada um em relação ao que os esperava ao final da jornada. A
cidade ideal do cachorro não teria carros, para evitar atropelamentos, e
possuía um poste por metro quadrado. A galinha, por sua vez, sonhava com ruas
repletas de minhocas, enquanto a gata imaginava bondes com tripas frescas,
sardinhas e peças de alcatra no final da linha.
Assim como os saltimbancos do musical infantil criado pelo italiano Sergio Bardotti e pelo argentino Luiz Enríquez Bacalov, adaptado para o português por Chico Buarque em 1977, nós alimentamos muitas ilusões em relação ao nosso sistema eleitoral. Desejamos que ele garanta o pluralismo de ideias e visões de mundo presentes no país, fazendo com que os Legislativos sejam um reflexo de nossa complexa estrutura social. Para proporcionar que as mais diversas correntes ideológicas possam ser defendidas, estimulamos a criação de partidos com fundos públicos e isenções de tributos para a veiculação de propaganda eleitoral “gratuita”.
Mas “a cidade é uma estranha senhora, que
hoje sorri e amanhã te devora”, advertia o sábio jumento quanto às expectativas
elevadas de seus amigos. Na semana passada, a aprovação da elevação do fundão
eleitoral para R$ 5,7 bilhões mostrou as garras afiadas da nossa classe
política, a cada ano mais faminta por dinheiro público.
Como argumentei na coluna anterior, nosso
sistema eleitoral favorece políticos ligados às velhas e novas oligarquias
partidárias, assim como celebridades ou representantes de grupos econômicos,
religiosos ou profissionais. Isso acontece porque as eleições são realizadas em
áreas muito grandes, que elevam o custo das campanhas. Esse quadro ainda é
agravado pela existência de dezenas de partidos, a maioria sem identidade
programática, que lançam centenas de candidatos para cada cargo em disputa.
A decisão de se gastar a fábula de um
bilhão de dólares para bancar as campanhas do ano que vem só piora a situação,
pois a distribuição dos recursos entre os candidatos fica nas mãos dos
dirigentes dos partidos, que tendem a favorecer a si próprios, seus parentes e
aliados. Diante desses fatores, as chances de eleição de um concorrente sem
vínculos com a política tradicional ou com grupos de interesses são mínimas
diante de barreiras à entrada tão elevadas.
Como os animais dos Saltimbancos, cada
pessoa tem sua visão de sistema político ideal. Já que estamos falando de
fábulas, se me fosse dado um hipotético poder de reformular as regras atuais
com um passe de mágica, eu faria o seguinte:
1) Para baratear as campanhas, eu
dividiria cada Estado em regiões eleitorais (distritos) menores, cada uma delas
elegendo em média quatro deputados - a metade do número atual de deputados dos
Estados menores (AC, AM, AP, DF, MS, MT, RN, RO, RR, SE, TO). Eleições em
regiões menores reduziriam os custos de deslocamentos publicidade, além de
aproximar os candidatos dos eleitores locais.
2) A disputa em cada um desses
distritos eleitorais seria feita segundo o modelo de lista fechada, em que os
eleitores votariam na legenda, segundo uma ordem de classificação prévia
definida por cada partido a partir de prévias obrigatórias entre seus afiliados
locais. A ideia é coibir a personalização da política, diminuindo o risco de
eleição de corruptos, milicianos, celebridades sem vocação política e afins,
além de estimular a democracia interna dos partidos.
3) Por falar em partidos, a cláusula
de desempenho e o fim das coligações parecem estar funcionando bem para minar a
força dos partidos de aluguel - prova disso é a pressa do Congresso em aprovar
o distritão, que age no sentido contrário. Minha sugestão aqui seria apenas dar
ao fundo eleitoral o mesmo tratamento do fundo partidário e da propaganda em
rádio e TV, aumentando ainda mais os incentivos para a fusão de partidos
pequenos.
4) Para bancar as campanhas, não é
salutar depender de fontes concentradas de dinheiro, seja o fundão eleitoral,
grandes empresas ou bilionários. Na minha proposta haveria uma redução drástica
dos fundos eleitoral e partidário, além da imposição de limites baixos para
contribuições de indivíduos e empresas, assim como o uso de recursos próprios
pelos candidatos - algo como R$ 5 mil por CPF e R$ 50 mil por CNPJ (no total, e
não por recebedor). A pulverização do financiamento forçaria partidos e
candidatos a se aproximarem dos eleitores, buscando conquistar não apenas seus
votos, mas também suas doações. Como bônus, ainda fecharíamos um caminho para a
influência empresarial na política.
5) Esse modelo de limites baixos de
doações, porém, só funcionaria se viesse acompanhado de um endurecimento da
criminalização do uso de laranjas e de caixa dois nas campanhas. O combate ao
financiamento ilícito também dependeria de maior transparência nas prestações
de contas e do fortalecimento da estrutura dos órgãos de controle (Ministério
Público, Receita, Tribunais de Conta) e da Justiça Eleitoral, assim como da
reformulação das normas processuais para se evitar a prescrição de crimes e
impunidade de forma geral.
Não tenho ilusão de que essas propostas
sejam perfeitas, mas acredito que podem constituir um bom ponto de partida para
uma discussão em torno de um novo sistema eleitoral com campanhas mais baratas,
menos partidos (porém mais fortes) e uma menor dependência de dinheiro público
e privado.
Na fábula inspirada num conto dos irmãos
Grimm, os saltimbancos venceram a exploração dos patrões combinando a esperteza
da gata, a paciência do jumento, a lealdade do cachorro e a teimosia da
galinha. Eu ainda não perdi as esperanças de que possamos unir nossos esforços
contra os barões da política brasileira. “Todos juntos somos fortes, não há
nada a temer”.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor
em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema
político brasileiro”.
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