O Estado de S. Paulo
Aquela grotesca foto foi estratégia para
tentar melhorar a declinante imagem de Bolsonaro
A exploração política do corpo doente e da
morte é uma marca da estratégia do presidente Jair Bolsonaro. Ela é empregada
tanto em sua forma de governar quanto em seu objetivo reeleitoral. Mais de 530
mil brasileiros morreram vítimas da covid-19, ou seja, da incúria governamental
e do desprezo pelo outro, sem que palavras de solidariedade e de compaixão
acompanhassem as famílias vitimadas. Agora, num estranho – mas nem tanto –
movimento paradoxal, o mesmo presidente expõe publicamente uma foto de seu
corpo doente, procurando colocar-se como vítima.
Normalmente, embora se tenha tornado difícil falar de normalidade nos tempos que correm, as pessoas, na doença e na morte, se recolhem, voltam-se para os seus sentimentos e pensamentos, entre os seus. O seu comportamento caracteriza-se pela privacidade, pela união familiar e da amizade, numa comunhão que assim se forma. Valores morais e religiosos fazem parte dessa atitude, por diferentes que sejam os princípios e os credos. Há um tipo de junção que tenderíamos a caracterizar como humana, infensa a considerações de ordem política. Há algo aqui que diz respeito à dignidade.
A grotesca foto do presidente Bolsonaro
foge a esse padrão. Em vez da privacidade, a exposição pública; em vez do
recolhimento, a exploração política. Não é a cura que está em jogo na
estratégia escolhida, apesar de ser a sua preocupação individual. Não é a
pessoa doente que foi exibida, mas o candidato que procura aprimorar a sua
estratégia eleitoral, uma vez que sua imagem pública está cada vez mais
deteriorada.
A imagem de seu corpo retrata a sua curva
política descendente, embora procure ele dela aproveitar-se para melhorar seus
índices de aprovação política. Não é o corpo decaído que está em questão, mas a
queda de sua imagem eleitoral.
A sua estratégia atual é uma mera repetição
de seu comportamento e dos seus familiares e aliados quando da facada que
sofreu em 2018. Naquele então, ela lhe serviu para angariar simpatia e
popularidade, a compaixão dos outros, dando-lhe a boa justificativa de não
comparecimento a nenhum debate com os outros candidatos a presidente. Não teve
de expor suas ideias, não somente porque não as tinha, mas porque estava
impossibilitado de fazê-lo. A ferida e a presença da morte tornaram-se trunfos
eleitorais.
Acontece, porém, que a situação mudou, pois
quem não se compadeceu com as vítimas da pandemia não deveria – nem poderia –
querer suscitar o mesmo sentimento em relação a si mesmo. O que foi um evento
pessoalmente adverso se torna nessa sua reapresentação uma farsa. Como procurar
suscitar a compaixão para si, quando não tiveram o presidente e seus asseclas
nenhuma compaixão pelos outros?
Não se trata apenas de mau gosto na
retratação do corpo sofrido. A questão é muito maior, uma vez que põe em pauta
uma espécie de gozo mórbido em relação a si mesmo que é a outra face do gozo
com a morte alheia.
O atraso na compra das vacinas, a aposta na
imunização de rebanho, a publicidade das poções mágicas como “remédio”
preventivo para o vírus, a falta de respiradores com pessoas morrendo de
asfixia, as negociações políticas de quais vacinas adquirir e, agora, as
denúncias de corrupção, reveladas pela CPI, são comportamentos que produzem
imagens públicas que vieram para ficar. Quando a história deste período for
ulteriormente estudada, certamente os historiadores se perguntarão como os
brasileiros puderam chegar a tal grau de loucura política. Será a
inteligibilidade do ininteligível.
Como não poderia deixar de ser, a
estratégia bolsonarista tem como objetivo inscrever o estado de saúde do
presidente no marco da teoria da conspiração. O problema residiria, de acordo
com essa insensatez doutrinária, em que o criminoso que o feriu seria um agente
do PSOL e, mais amplamente, do PT. E investigações não teriam sido feitas.
O roteiro é sempre o mesmo. Toda
investigação que não corresponde ao objetivo presidencial se torna uma não
investigação.
Mas houve, sim, investigação, cujo resultado
foi o de que esses partidos não tiveram nenhum envolvimento naquele episódio,
que se tratou de um ato fruto da conduta individual de uma pessoa totalmente
desequilibrada. Eis o fato, porém, como não corresponde à versão bolsonarista,
torna-se um não fato.
Trata-se do mesmo procedimento que estamos
observando a propósito do voto impresso. Não houve nenhuma prova, nem indício,
de que a urna eletrônica tenha sido violada, mas, antecipando uma derrota
possível, o presidente Bolsonaro não cessa de repetir que apresentará as
provas, sem nunca fazê-lo. O fato da lisura do pleito, do qual saiu vencedor,
se torna algo sob suspeita, fruto de uma conspiração. A teoria é tão esdrúxula
que significaria, tomando-a a sério, a conspiração que o levou ao poder!
Nesse sentido, a sua foto é somente um outro aspecto de sua política, que considera todo aquele que dele discorde um inimigo a ser eliminado. É a paranoia do outro que procuraria abatê-lo!
*Professor de Filosofia na UFRGS.
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