Falou & Disse
O Bloqueio econômico é criminoso, mas as
restrições de liberdade são demasiadamente nocivas ao desenvolvimento do ser
humano, consequentemente, ao desenvolvimento da coletividade.
Após 62 anos da revolução vitoriosa
comandada por Fidel Castro, Che Guevara e outros revolucionários, a população
cubana vai mais uma vez às ruas para manifestar insatisfação contra o governo
cubano, o que aconteceu espontaneamente em várias cidades, há uma semana.
Os protestos contra o governo do presidente
Miguel Diáz-Canel – os primeiros desde que os irmãos Castro (Fidel e Raul)
deixaram o poder definitivamente – ocorrem num momento em que a pandemia que
circunda o mundo atua com maior intensidade, dada a fragilidade do sistema de
saúde, agravando a crise econômica, com baixa atuação do turismo, uma das
principais fontes de renda da Ilha que é a maior do Caribe.
Situação essa agravada pelo bloqueio
econômico imposto pelos Estados Unidos e outras nações capitalistas,
intensificado recentemente pelas atitudes mesquinhas do Trump, as quais não
foram aliviadas ainda pelo novo presidente dos Estados Unidos,Joe Bidem,
conforme prometido por este.
Os manifestantes ocuparam o Malecon, seu “Calçadão” conhecido pelo mundo inteiro, contornando o azul do mar do Caribe, como se fosse uma moldura de uma grande tela pintada pela natureza. Muitos nunca haviam participado de movimentos desta natureza. Consta que 70% da população atual da Ilha nasceram após o processo revolucionário que culminou na alvorada do primeiro dia do ano de 1959, com a queda do ditador Fulgêncio Batista.
Na ilha, mobilizações, manifestações,
organizações, são gerenciadas pelo partido e o partido é o governo. As últimas
manifestações organizadas espontaneamente pela população foram articuladas
através das redes sociais e ganharam as ruas, com reivindicações que se
encontram reprimidas há muitos anos, além de outras acrescidas pela situação de
pandemia.
O presidente Miguel convocou todos à defesa
da Constituição e das conquistas revolucionárias, contra o inimigo vizinho e
maior, o quase decadente império americano. Enquanto isso a população gritava
palavras de ordem contra a fome, pela liberdade de ir e vir, contra a ditadura.
O bloqueio econômico foi instituído em
1962. Já se vão 59 anos.
Muita coisa mudou aceleradamente no mundo.
O processo de globalização incorporou todas as nações, independente da
soberania de cada uma, e as redes de comunicação costuram o emaranhado das
relações econômicas, culturais, sociais, sem nenhum pudor.
Há que se considerar um crime contra a
humanidade o bloqueio contra Cuba, porque cerceia os direitos de sua população,
que são universais. Coloca em risco o direito à vida, quando se restringe a
possibilidade de ter alimentos, insumos para produção, importação de produtos
básicos. Fortalece também o autoritarismo governamental da Ilha. “O bloqueio
econômico, comercial e financeiro imposto pelo governo dos Estados Unidos da
América à Cuba por quase seis décadas é o sistema mais injusto, severo e
prolongado de sanções unilaterais já impostas a qualquer país”, registra o
relatório de 2019 produzido por Cuba e apresentado à Assembleia Geral das
Nações Unidas.
Chega a ser ridícula, tamanha tirania
contra um país com pouco mais de 10 milhões de habitantes. Segundo o governo
cubano, os principais parceiros de importação são os Países Baixos (21,8%),
Canadá (21,6%), China (18,7%) e Espanha (5,9%). Já os de exportação são:
Venezuela (36,4%), China (10,5%), Espanha (8,7%), Brasil (5,1%) e EUA (4,2%), o
que caracteriza que o bloqueio já não é total.
Em contrapartida, uma revolução já
combalida em razão do bloqueio que impede o seu desenvolvimento e da relação de
fidelidade ao socialismo, que não existe. Outros países como China, Vietnã,
Polônia e Rússia corrigiram o rumo, cada um do seu modo.
Nunca visitei Cuba, mas visitei por quase
durante quase três meses a antiga União Soviética, berço do socialismo real, no
momento da perestroika (reestruturação econômica). Éramos cinco mulheres do
Partido Comunista Brasileiro ( PCB). O ano, 1989. E foi muito quebra cabeça
para entender a ditadura do proletariado, com um só partido que era governo e
era também a presença dominante nas organizações como as fazendas comunitárias,
os conselhos operários, conselhos de fábricas, o movimento de mulheres, a
Assembleia Legislativa chamada Duma, e outros.
A Revolução Cubana surgiu da insatisfação
com o governo ditatorial e corrupto de Fulgêncio Batista, e teve como grande
dirigente Fidel Castro e outros nomes importantes no comando
como Raúl Castro, irmão de Fidel, Ernesto “Che” Guevara –
transformado no grande nome da luta revolucionária na América Latina – e Camilo Cienfuegos.
Segundo Eric Hobasbawm, nenhum
dirigente cubano na revolução pertencia ao movimento comunista internacional e
a aliança à antiga União Soviética só aconteceu quando foram estatizadas as
indústrias e as terras que funcionavam com capital americano. “Embora radicais,
nem Fidel Castro nem qualquer de seus camaradas eram comunistas, nem (com duas
exceções) jamais disseram ter simpatias marxistas de qualquer tipo. Na verdade,
o Partido Comunista cubano, […], era notadamente não simpático a Fidel, até que
algumas de suas partes juntaram-se a ele, meio tardiamente, em sua campanha”.
(Brasil Escola)
Na verdade, antes da revolução, Cuba era o
chamado quintal dos Estados Unidos, onde dominavam a corrupção e a máfia com o
controle da indústria do turismo, cassinos e entretenimento.
Somente em 1962, com a crise dos mísseis,
quando o mundo viveu a ameaça de uma guerra nuclear, Fidel e seus camaradas se
aliaram à União Soviética em troca de apoio militar, técnico e grandes
subsídios financeiros, num momento da chamada Guerra Fria, conflito instalado
pelas duas grandes potências (Estados Unidos e União Soviética), emergidas da
Segunda Guerra Mundial, em busca da superioridade econômica e ideológica.
Ao mesmo tempo, a revolução cubana surgia
para o mundo e sobretudo para a América Latina como ícone e exemplo a ser
seguido pelos países colonizados e mantidos sob ditaduras, considerando as
peculiaridades com as quais lidaram os revolucionários: determinação,
paciência, resiliência, misticismo e grande apoio popular.
“Em Cuba, a grande maioria da
intelectualidade brindou a revolução e a ela foi fiel, sobretudo até o final
dos anos de 1960. Carlos Monsiváis (2000) denomina esse período dos años
del consenso. Na opinião do autor, nunca houve na história um feito político
capaz de articular em torno de si tantos artistas e intelectuais. Segundo o
autor, a ressonância da revolução aumentou quando, ainda, em 1959, as
autoridades cubanas decidem fundar a Casa de las Américas, em Havana, cujo
objetivo era obter o apoio de artistas, escritores e intelectuais de esquerda
de todo o mundo à revolução cubana. (Rickley Leandro Marques, in o papel
dos intelectuais na Revolução Cubana)
A Casa das Américas permaneceu durante a
década de 1960 como o fórum mundial para discussão sobre o socialismo. No
entanto, mesmo que os intelectuais cubanos já tivessem percebido a falta de
liberdade de expressão, “não estavam dispostos a desistir da revolução e das
suas inegáveis conquistas no campo social e mesmo cultural e justificavam os
deslizes do governo”.
Um pronunciamento de Fidel em 1961, no
discurso de encerramento do Primeiro Congresso de Escritores e Artistas
realizado entre os dias 18 a 22 de agosto, pôs fim a lua de mel entre
intelectuais e os dirigentes do governo, tendo início uma profunda divergência
que se configurava entre a consolidação da revolução e os perigos da liberdade
de expressão, do desenvolvimento da criatividade e da liberdade do livre
pensamento.
Naquele momento, Castro deu um aviso a eles: “Dentro de la revolución, todo; fuera de la revolución, nada”. A afirmação de Fidel Castro foi afixada em cartazes e muros pela ilha, inaugurando o novo paradigma da revolução.
Mais tarde, uma década após o primeiro
desencontro, aconteceu o caso Padilha. O escritor Herberto Padilha, um dos
escritores mais conhecidos à época, vencedor de um concurso com um livro de
poesias intitulado Fuera del Juego, considerado contra a revolução porque
tratava de questões relacionadas à individualidade do ser humano, quando a
consolidação revolucionária deveria priorizar o coletivo. “Assim Padilla, nos
termos desse documento é considerado um dissidente político”. O poeta não mais
foi aceito pela revolução por ter escrito poemas que, na opinião do governo,
eram contra-revolucionários” (Rigkley)
O título de um dos principais poemas, Em
Tempos Difíceis, a quem se pedia ao ser humano, seus órgãos, sua própria vida…
“Pediram-lhe o peito, o coração, os ombros. Disseram-lhe que isso era
estritamente necessário. Explicaram-lhe depois que tudo o que doara seria
inútil sem que entregasse a língua, pois em tempos difíceis nada é tão útil
para interceptar o ódio ou a mentira” (Poesia Ibero Americana). Numa alusão ao
cerceamento das liberdades.
O Fato é que Cuba havia se entregue ao
pensamento soviético e para consolidar a revolução (reforma agrária,
universalização da educação, saúde para todos, implantação de parque
industrial, tecnologia) não hesitou em se desfazer de suas peculiaridades e
seguir aplicando a cartilha tradicional do movimento comunista
internacional, que em 1990 assinava sua falência com a queda do Muro de Berlim,
levando em conta o esgotamento do modelo político fechado, centralizado e
excessivamente burocrático da URSS.
É bom lembrar que o líder soviético Lenin – que se foi muito cedo – e Guevara – que uns tempos depois foi morto, em 1967, na Bolívia – tinham uma visão semelhante sobre os processos revolucionários, sobretudo no que concernia a sua expansão, o que implicava necessariamente na formação da consciência e do “Homem Novo uma nova perspectiva de humanidade que deveria estar no cerne da formação de uma sociedade comunista”. (Tirso Saenz em Encontros com a Filosofia)
Ou seja, chamavam a atenção para um
processo dedicado ao trabalho, aos estudos, à filosofia, às artes, em
contraponto à formação da burocracia estatal.
Guevara chamava atenção para a importância
de se compreender ao mesmo tempo as “particularidades” e a “universalidade” inerentes
a todos os processos. Falava que todos chegariam um dia ao socialismo, mas cada
país teria a sua peculiaridade.
“Para Guevara, a consciência é o modo
fundamental de se expressar a inter-relação do homem com o meio: é uma ação
consciente, predomínio do fator subjetivo organizado. Tal atributo deve
prevalecer durante o período de transição ao socialismo, tendendo a
homogeneizar a sociedade. A consciência é a antítese da economia. Na concepção
de Che, a consciência é a alavanca fundamental, a ferramenta para lograr que as
forças produtivas e as relações sociais de produção deixem de ser meios para
perpetuar a dominação como era no capitalismo (GUEVARA, 1965b, pp 69-70).
O homem do que fala o Che é o homem em
revolução e o homem revolucionado pela ação, o ser humano que se muda ele mesmo
junto com a sociedade, que se realiza na atividade revolucionária, que
transcende o individualismo e o egoísmo ao exercer o trabalho, a organização, a
luta, a solidariedade e os sacrifícios” (MARTINEZ HEREDIA, 1989, pp. 64-65,
citação de Tirso)
Passaram-se 62 anos. Não podemos deixar de
refletir sobre a complexidade de um processo que assumiu lugar de destaque no
imaginário da população mundial, sobretudo dos jovens confiantes na utopia da
liberdade. Nem podemos deixar de reconhecer algumas conquistas de tantos anos a
muito custo, mesmo que, apesar de ter alguns indicadores sociais avançados,
cresce apartada do resto do mundo, no que se refere à dinâmica econômica e às
liberdades individuais.
Não podemos avaliar as manifestações nem
medir a vontade do povo comparando com o sistema capitalista apenas pelo fato
de terem as condições básicas para a sobrevivência, concedida pelo estado.
O Bloqueio econômico é criminoso, mas as
restrições de liberdade são demasiadamente nocivas ao desenvolvimento do ser
humano, consequentemente, ao desenvolvimento da coletividade.
Devemos pensar que a luta do povo cubano é
a nossa luta. Vivemos num país onde a Constituição e a democracia nos garante
os Direitos Humanos básicos, mas que a todo momento são solapados pelo fator
econômico, pelas algemas do capitalismo.
No Brasil somos livres, num Estado de
Direito onde se a maioria não vende sua força de trabalho, não garante o seu
direito de morar, comer, vestir…
O grande desafio da humanidade ainda é
encontrar formas de vida distantes dos poderes totalitários, “em busca da
identidade humana”, como diz Edgar Morin em suas reflexões: “Refletir sobre a
complexidade do ser humano e a quantidade incrível dos seus sonhos”. Lembrar
que a cultura é indissociável das criaturas que se organizam em seus coletivos,
ao mesmo tempo que permite dar novos significados às formas de vida já
existentes.
No entanto, devemos creditar ao povo cubano
e à sua vontade as necessidades de correção do rumo da sua história. Parece que
já é passada a hora.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga.
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