O Globo
De novo na estrada. Depois de quase um ano
e meio de quarentena, sinto-me como um jogador que se ausentou longamente dos
campos: um pouco fora de forma.
A grande diferença agora é que não posso
acompanhar as notícias no seu fluxo. É preciso esperar o fim do dia de trabalho
para saber o que está acontecendo. É de estarrecer.
Ao fim da primeira jornada, descobri que os
deputados votaram um fundo eleitoral de R$ 5,7 bilhões em plena pandemia.
No momento em que nos debatemos com um
governo que, pela incompetência, e possivelmente corrupção, cuidou muito mal do
povo brasileiro, contribuindo para milhares de mortes, surgem os deputados
saqueando os cofres públicos.
Para onde quer que olhemos, o panorama é
desolador. Felizmente, foi apresentada a emenda constitucional que barra a
presença de militares da ativa no governo. Cinco ex-ministros da Defesa se
manifestaram a favor da ideia.
Os deputados parecem sentir a fragilidade de Bolsonaro e resolveram aprofundar a exploração das pessoas que trabalham. No passado, as eleições foram contaminadas pela relação com empresários que compravam candidatos. A ideia de um fundo eleitoral era destinada a corrigir isso, com eleições modestas e debate de programas, sobretudo agora com novas plataformas.
Parece que resolveram virar as costas para
nós. Quando menciono a fragilidade de Bolsonaro, não quero me referir a sua
doença, que deve ser curada nos próximos dias. A fragilidade é determinada pela
existência de mais de uma centena de pedidos de impeachment. O preço que ele
paga é alto e, naturalmente, a fatura deve ser distribuída por toda a
sociedade.
Seria interessante lembrar os idos de 2013.
As pessoas saíram às ruas e protestaram com vigor. Foi uma advertência ao
próprio processo de redemocratização, que as subestimou precisamente porque os
líderes estavam mais preocupados em financiar suas campanhas.
Foi no curso desse declínio de legitimidade
que surgiu Bolsonaro, de forma oportunística, desafiando o que ele chamava de
todo o sistema. Hoje sabemos bem que Bolsonaro não participava do grande
esquema de corrupção porque criou o seu, artesanal e familiar, materializado
nas rachadinhas.
No interior do Brasil, por onde ando, não
há grandes manifestações. Parece que esperam pelas metrópoles, onde há mais
facilidade em mobilizar e todo o aparato de divulgação está concentrado.
Isso não significa, entretanto, que as
pessoas não estejam atentas a todos os golpes como esse do fundo eleitoral e a
todas as desastradas atitudes de Bolsonaro, cujo prestígio se derrete.
Não creio que o processo de 2013 se repita,
nos mesmos termos, como aliás nada se repete exatamente na História. Se a
degradação do sistema político possibilitou a aventura de Bolsonaro e sua
extrema-direita, o que mais pode acontecer se o sistema continua a se degradar?
Tenho pensado muito nas condições que
possam neutralizar a extrema-direita no Brasil, para que nunca mais volte ao
poder, depois de tantas mortes e tanta devastação ambiental.
Chegamos a uma situação, segundo um recente
estudo, em que a Amazônia hoje emite mais gás carbônico do que retém em suas
matas. A longo prazo, estão contribuindo para inviabilizar a própria
humanidade.
E, no curto prazo, estão inviabilizando o
que ainda podemos chamar de civilizacão brasileira. Bolsonaro, desmatadores,
incendiários, deputados vorazes — todos parecem unidos na tarefa de devastar a
esperança de construir um país decente.
O autointitulado salvador da pátria já foi
para o espaço e não volta em 22. Mas o sistema político continua de costas para
a sociedade.
Sem perceber essa armadilha, sem reformar o sistema político, estaremos condenados a uma sucessão de nostalgias a que chamamos generosamente de futuro. Mas, na verdade, serão apenas simulacros cavando abismos entre representantes e a sociedade.
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