EDITORIAIS
Semipresidencialismo, uma mudança possível
O Estado de S. Paulo
No horizonte político, há um fato novo que
pode ser muito benéfico para o País. Vem ganhando aceitação e apoio nos meios
políticos a proposta de uma mudança do sistema de governo, nos termos
defendidos pelo ex-presidente Michel Temer neste jornal (cf. os artigos O
semipresidencialismo, de 11/7/2019 e
de 12/6/2021).
Em vez do sistema atual, em que o
presidente da República é chefe de Estado e chefe de governo, a proposta é
instaurar o semipresidencialismo, um sistema híbrido de governo bem-sucedido em
países como Portugal e França.
A diferença do semipresidencialismo com o
parlamentarismo puro decorre da manutenção de funções relevantes no presidente,
como “chefiar as Forças Armadas, conduzir a diplomacia, ter direito de veto ou
sanção, nomear e exonerar os membros do governo quando o primeiro-ministro o
solicitar, e nomeá-lo, além de outras tantas tarefas que lhe concedam
participação e comando efetivos. (...) Penso que será mais bem aceito num país
que viveu mais de um século em regime presidencialista”, escreveu Michel Temer.
De fato, a proposta do semipresidencialismo tem ganhado defensores, seja porque respeita a cultura política brasileira – o parlamentarismo foi rejeitado em dois plebiscitos –, seja porque oferece um caminho viável para uma maior estabilidade política e uma governabilidade mais efetiva. “No presidencialismo se impõe a figura do articulador político, que deve fazer a interlocução do Executivo com o Congresso. No semipresidencialismo, o primeiro-ministro, como chefe de governo, com sede no Parlamento, faz naturalmente essa articulação”, lembrou Michel Temer.
“Pessoalmente, sou simpático à ideia”,
disse o presidente nacional do MDB, deputado Baleia Rossi (SP). Também o
presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), defendeu a discussão sobre
a mudança de sistema, que poderia começar a valer a partir de 2026. “Nesse
sistema, se for o caso, é muito menos danoso que caia um primeiro-ministro do
que um presidente”, disse Arthur Lira.
No semipresidencialismo, a mudança de
governo não cria traumas institucionais. “Mantida a maioria, o Gabinete
governa. Perdendo-a, cai o governo”, explicou Michel Temer.
A mudança de sistema tem consequências não
apenas sobre as funções do presidente da República, mas também sobre o Legislativo,
que passa a ter responsabilidade direta sobre o governo e seus resultados. Essa
nova dinâmica reduz o fisiologismo nas relações entre o Executivo e os
parlamentares.
Logicamente, nem todo mundo está de acordo
com essa fórmula institucional. A presidente nacional do PT, deputada Gleisi
Hoffmann (PR), discorda do semipresidencialismo. “É tornar o presidente sem
poder”, disse. Como se vê, a concentração de poder em uma única pessoa, mesmo
depois de tantas experiências negativas, continua tendo defensores.
O semipresidencialismo não é, por óbvio,
panaceia para todos os males do sistema político atual, tampouco é capaz de
produzir sozinho os bons resultados esperados. Para o bom funcionamento do
semipresidencialismo, um aspecto essencial é a redução do número de partidos
políticos. “Essa proposta (do semipresidencialismo) eu acredito que possa ser
implantada quando tivermos um número de partidos bastante reduzido”, disse
Gilberto Kassab, presidente nacional do PSD.
Mais do que postergar o debate sobre o
semipresidencialismo, o atual número de legendas deve recordar a necessidade de
implementar, cada vez com mais intensidade, medidas que reduzam a fragmentação
partidária. Em 2017, o Congresso deu um importante passo nessa direção, ao
aprovar a cláusula de barreira.
A mudança para o sistema
semipresidencialista não é uma ideia utópica. De alguma forma, ela é a
continuidade de melhorias que já vêm sendo feitas nos últimos anos, como o fim
das doações empresariais, a cláusula de barreira e a proibição das coligações
em eleições proporcionais. O semipresidencialismo merece ser seriamente
debatido. Pode ser o caminho viável para fortalecer a governabilidade e
aumentar a responsabilidade política.
A volta da violência
O Estado de S. Paulo
Em 2020, não bastassem as centenas de
milhares de mortes causadas pelo vírus (e facilitadas pela desídia do governo),
os brasileiros viram aumentar as mortes causadas por seus compatriotas. Segundo
o Anuário do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, após 2017, o ano mais
mortífero da história, as mortes violentas intencionais caíram por dois anos e
em 2020 voltaram a crescer, na taxa de 4,8%.
Entre os fatores sugeridos pelo Fórum estão
o rearranjo do crime organizado; o desinvestimento e os conflitos das polícias;
e, também aqui, a inépcia do governo.
Das 27 unidades federativas, 16 registraram
aumento, especialmente no Nordeste, onde houve alta em todos os Estados, na
média de 21%. A causa mais plausível é a reorganização das disputas
territoriais do crime organizado.
O cerco ao Primeiro Comando da Capital
(PCC), por meio da interrupção de rotas do tráfico, isolamento das lideranças
nos presídios e bloqueio de recursos, pode ter desencadeado conflitos por novas
lideranças e rotas. Especula-se que o enfraquecimento do PCC, e de sua rota
tradicional da droga do Paraguai e da Bolívia rumo aos portos do Sudeste, tenha
levado ao fortalecimento do Comando Vermelho na rota amazônica, por onde a
droga da Colômbia e do Peru escoa até os portos do Nordeste.
O ano também foi marcado pela instabilidade
das forças policiais. Quase 30% dos policiais foram vitimados pela covid, o que
debilitou o policiamento. O País teve uma redução de 1,7% dos gastos com
segurança, com cortes expressivos nos municípios.
Os dados escancaram mais um estelionato
eleitoral de Jair Bolsonaro, demolindo o mito de que seu governo priorizaria a
segurança.
Bolsonaro herdou do governo Temer um
cenário de queda da violência, recursos do programa de repasse de verbas da
Loteria para a segurança pública e o projeto do Sistema Único de Segurança
Pública (Susp). Mas “tudo o que foi construído em 2018 foi negligenciado pela
gestão Bolsonaro”, aponta o relatório. “No plano político, o presidente não
está preocupado com a cooperação ou eficiência técnica do trabalho policial. Ao
contrário, tem estimulado a ampliação de padrões operacionais pautados no
confronto e na guerra (ampliação do excludente de ilicitude, elogios a
operações que têm como resultado a morte).” Bolsonaro também estimulou a
radicalização ideológica de policiais e o confronto com governadores.
Mesmo iniciativas positivas de seu próprio
governo, como o projeto Em Frente, Brasil, que visava a reduzir a violência nos
municípios com mais mortes – o que é pertinente, dado que os 138 municípios com
letalidade acima da média nacional concentram 37% dos assassinatos –, foram
descontinuadas devido à rinha política de Bolsonaro com o ex-ministro da
Justiça Sérgio Moro.
Nada se fez para concretizar a razão de ser
do Susp de dar mais eficiência e integrar as ações dos entes federados. Ao
contrário, o Sistema foi instrumentalizado para concentrar poderes, estabelecer
linhas diretas entre o governo federal e as polícias estaduais e fabricar dossiês
de inteligência contra dissidentes.
O Ceará é o próprio emblema da desgraça. Em
2017, a guerra entre facções aterrorizou a população e levou o Estado ao
recorde de assassinatos. Nos anos seguintes, o Estado foi o que mais reduziu as
mortes. Mas, em 2020, o motim da PM, que não contou com uma só palavra de
reprovação de Bolsonaro (e muitas de aprovação das hostes bolsonaristas),
deixou a população refém dos criminosos e deu margem à ofensiva do Comando
Vermelho sobre os territórios da facção rival, os Guardiões do Estado. A
mortalidade explodiu: 75% em relação a 2019.
A única política de segurança pública do
governo, o armamento da população, efetivamente avançou – e com ela, a
violência. Em 2020, o aumento de armas nas mãos de civis foi 97% maior que em
2019. O controle e a fiscalização foram debilitados por decretos presidenciais,
e entre 2019 e 2020 o uso de armas de fogo nos assassinatos cresceu de 72% para
78%.
O vírus da violência voltou a se espalhar,
e um de seus maiores disseminadores, se não o maior, está no Planalto.
O G-20 ante as crises globais
O Estado de S. Paulo
O G-20, formado pelas principais potências
mundiais e países de todos os continentes, responde por 63% da população do
planeta e 87% de sua receita. Em certa medida, é o que a humanidade encontrou
de mais próximo a um governo mundial. Em uma emergência planetária, esperava-se
que o encontro de suas autoridades financeiras no último dia 9 se traduzisse em
progressos significativos para os desafios globais do momento: vencer o vírus,
alavancar a recuperação econômica e conter as mudanças climáticas. O progresso
houve, mas foi insuficiente, especialmente em um aspecto crucial: a restauração
da confiança e da cooperação entre os países ricos e pobres.
O avanço mais significativo foi a ratificação
de um piso global para a tributação das multinacionais. O quadro vinha sendo
articulado há uma década pela OCDE e foi ratificado pelo G-7 em junho, mas
havia dúvidas sobre a participação de potências como China e Índia. O acordo
corrigirá disfunções e anacronismos do sistema internacional – particularmente
acentuados com a expansão dos negócios digitais –, permitindo mais controle da
sonegação, da evasão fiscal e da operação dos paraísos fiscais.
Também significativo foi o apoio a uma nova
alocação de Direitos Especiais de Saque, o instrumento monetário criado pelo
FMI para completar as reservas dos países. O valor de US$ 650 bilhões é o maior
na história do FMI. Se bem distribuído aos países pobres – e não de acordo com
o peso econômico de cada país, como de hábito –, ele pode ser realmente “uma
injeção no braço do mundo”, como disse a diretora do FMI, Kristalina Georgieva.
Georgieva também elogiou o reconhecimento
por parte do G-20 da necessidade de aprimorar a capacidade global de reação a
ameaças sanitárias e de regular o mercado de carbono para conter as mudanças
climáticas. Mas aqui os resultados foram mais voláteis.
O surpreendente sucesso da comunidade
científica no desenvolvimento das vacinas garantirá uma recuperação mais rápida
do que a prevista. O FMI estima um crescimento global de 6% em 2021. Contudo,
“a divergência entre as economias está se intensificando”, notou Georgieva. “O
mundo está diante de uma recuperação em duas vias”, mais rápida para os ricos,
bem menos para os pobres.
Por isso, o fato de o Grupo não ter
engendrado um mecanismo para acelerar a imunização global é não apenas
frustrante, mas contraproducente. Nas condições atuais, as crianças dos países
ricos serão vacinadas antes da maioria dos adultos do mundo. A motivação para isso
é emocional. Racionalmente – do ponto de vista epidemiológico e econômico – é
injustificável. A suscetibilidade das crianças a contrair e transmitir o vírus,
ou a desenvolver a doença, é comprovadamente irrisória. Mas uma pandemia é por
definição uma ameaça global e, enquanto não for globalmente erradicado, o vírus
continuará a se espalhar e se alterar nos grotões mais pobres, sacrificando
vidas e empregos, com o risco de retornar aos países ricos em variantes
resistentes às vacinas.
Até junho, o programa da OMS para
distribuição de tratamentos e vacinas registrava uma carência de US$ 16,8
bilhões. O FMI estima que a vacinação dos adultos do mundo custaria US$ 50
bilhões. Isso é um milésimo da receita anual dos países ricos e 0,1% dos gastos
públicos com a covid-19. Se até meados de 2022 60% da população de cada país
fosse vacinada, isso geraria um retorno de US$ 9 trilhões até 2025 – além de
salvar meio milhão de vidas em 2021.
Se o grupo falhou em acelerar a saída de
uma emergência aguda e palpável, como a pandemia, ainda menos promissora é a
perspectiva para a emergência crônica e difusa das mudanças climáticas. A
precificação do carbono segue em suspensão e não se avançou na promessa de mais
de uma década de fornecer US$ 100 bilhões para financiar as transições
climáticas nos países pobres.
Se compromissos mais sólidos não forem
conquistados num futuro próximo, a “divergência” entre ricos e pobres advertida
por Georgieva se intensificará – mas o seu impacto será sentido por
todos.
Mais mortes e armas
Folha de S. Paulo
País experimenta aumento de homicídios e
retrocesso na política de desarmamento
Após dois anos de queda, o Brasil registrou
em 2020 um aumento de 4% do número de mortes violentas, que chegaram a 50 mil.
Em plena pandemia, um retrocesso nos resultados das políticas de segurança
pública —antes que tivessem sido bem compreendidos os motivos da melhora
anterior.
Por mortes violentas, no relatório anual do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entendem-se os homicídios dolosos (83%
do total, com alta de 5,3%), latrocínios, lesões corporais seguidas de morte,
feminicídios e mortes decorrentes de intervenção policial.
A violência também continua sendo
perpetuada por agentes do Estado, aponta o relatório. Em elevação contínua nos
últimos sete anos, triplicaram as mortes provocadas pela polícia entre 2013 e
2020, quando somaram 6.416.
Policiais morreram em maior número —172 em
2019, 194 em 2020. Entretanto a Covid-19 tirou mais vidas nas corporações no
ano passado (472).
Nota-se que as medidas de distanciamento
social não foram capazes de frear os homicídios. Pelo contrário. Enquanto
diminuíram os crimes patrimoniais, o pico das mortes violentas ocorreu entre
março e abril.
Sabe-se que eventos como o motim da PM
cearense contribuíram para a piora. Fora isso, pode-se supor que fatores como o
agravamento do desemprego têm influência nos indicadores do morticínio.
Deve merecer estudo especial daqui em
diante o impacto do aumento do número de armas de fogo em circulação —sob o
patrocínio do governo Jair Bolsonaro, os artefatos legais em poder de
particulares chegaram a 2 milhões.
A tese insana segundo a qual a população
deve ter acesso a armas para se defender da violência deu origem a uma série de
decretos presidenciais —na contramão do que se pretendia com o Estatuto do
Desarmamento, de 2003— para facilitar a posse e o porte.
É elevado o risco de que os armamentos
acabem nas mãos de criminosos ou que sejam usados em conflitos interpessoais,
como em feminicídios, disputas agrárias e até brigas entre vizinhos.
Preocupa, em particular, a alta de 30% do
número de armas registradas em nome de caçadores, atiradores e colecionadores
(de 433 mil para 561 mil), categorias que possuem acesso quase irrestrito a
artigos de alto poder ofensivo.
Tal cenário torna ainda mais urgente que o
Supremo Tribunal Federal delibere sobre os decretos armamentistas de Bolsonaro,
que desvirtuam a legislação em vigor e impõem má política pública.
Conta perigosa
Folha de S. Paulo
Governo arrisca ao associar aumento do
Bolsa Família à tributação dos dividendos
Pouco afeito ao cálculo político e ao senso
prático, o ministro da Economia, Paulo Guedes, não raro formula planos
mirabolantes que não saem do papel ou acabam desfigurados pelo Congresso.
Corre-se novamente esse risco com a
planejada ampliação do Bolsa Família, cujos detalhes não são ainda conhecidos.
Até aqui, a expectativa é de aumento do benefício para até R$ 300, cifra
mencionada pelo presidente Jair Bolsonaro, com acesso franqueado a mais
famílias.
Qualquer aumento permanente de despesas,
contudo, precisa se enquadrar nos dispositivos legais. O teto de gastos
inscrito na Constituição e as contrapartidas exigidas pela Lei de
Responsabilidade Fiscal são as principais balizas.
Quanto ao teto, o governo conta com um
espaço maior no Orçamento de 2022, que pode chegar a R$ 47,3 bilhões nas
projeções da Instituição Fiscal Independente.
A margem se deve à alta da inflação —a taxa
acumulada nos 12 meses encerrados em junho, de 8,35%, corrige o valor do teto a
vigorar no ano que vem. Já os gastos obrigatórios principais, como os
previdenciários, são atualizados pela variação dos preços de janeiro a
dezembro, estimada em 5,7%.
A diferença entre os dois números abre
folga para mais dispêndios, mas existe o risco de que a inflação se mostre mais
resiliente na segunda metade do ano.
Dadas as incertezas, a prudência deve ser
mantida. A prioridade, por certo, é a ampliação da proteção social. Ainda
segundo a IFI, o aumento de 30% do benefício e de 10% da clientela do Bolsa
Família ampliaria o custo do programa em R$ 14,7 bilhões, isto é, para R$ 48,7
bilhões em 2020.
A cifra pode caber no teto, mas demanda uma
atitude conservadora ante os demais gastos que não se vê no Executivo e no
Congresso, hoje a debater uma nova rodada de reajuste salarial para o
funcionalismo e mais dinheiro para emendas parlamentares.
A legislação exige ainda que se identifique
uma fonte de receitas compensatória —e aí se está diante de outra ideia
temerária de Guedes, para quem a nova despesa deve ser financiada pelos ganhos
com a tributação de dividendos.
Além de não ser ainda uma arrecadação
concreta, já que nada foi aprovado até agora, a reforma do Imposto de Renda
pode até resultar em perdas com as modificações introduzidas pelo Congresso.
Melhor seria cortar outros gastos para direcionar os recursos a um programa de proteção social mais amplo. Entretanto o governo rejeita escolhas difíceis e flertará com a irresponsabilidade.
É necessária e urgente a volta às aulas
presenciais
O Globo
O Conselho Nacional de Educação (CNE),
órgão que ajuda na formulação de políticas para a área, aprovou resolução em
que descreve como prioritária a volta às aulas presenciais para enfrentar a
maior crise educacional da história do país. No período entre 11 de março de
2020 e 2 de fevereiro de 2021, escolas de todos os países estiveram fechadas em
média por 95 dias, de acordo com dados da Unicef. Estudantes da América Latina
foram os mais afetados, com 158 dias. O Brasil ajudou a puxar essa média para
cima, com 191 dias, número que nos coloca no vexaminoso quinto lugar no mundo.
Caso os alunos do ensino público estivessem
aprendendo alguma coisa remotamente, o fechamento das escolas seria um mal
menor. Não é. O aplicativo de ensino do Estado de São Paulo, o mais rico da
Federação, atingiu uma penetração ridícula em 2020. Metade dos alunos
cadastrados nas escolas da rede pública nem sequer acessou a plataforma no ano
passado para acompanhar os conteúdos à distância, de acordo com o Tribunal de
Contas do Estado.
As consequências são todas sabidas. Antes
da pandemia, alunos de escolas públicas já tinham uma enorme desvantagem na
comparação com os do ensino particular. Sem aula nenhuma ou com pouco tempo de
aprendizado, essa diferença vem ganhando proporções ainda mais escandalosas.
Pelo menos em tese, aqueles eleitos para
tomar decisões deveriam ter condição de julgamento superior à da média da
população. Se existe temor sobre os perigos da Covid-19 para crianças e jovens,
é papel dos governos divulgar esclarecimentos. Nos 12 meses até abril, a chance
de um americano entre 5 e 14 anos morrer por causa do coronavírus foi de uma em
500 mil. Essa proporção equivale menos de um décimo da probabilidade de a mesma
criança ter morrido em acidente de trânsito antes da pandemia.
Diante da eventual oposição dos sindicatos
de professores ao retorno às escolas, é papel dos governos defender os direitos
dos alunos. Entre 85% e 90% dos profissionais da educação receberam pelo menos
a primeira dose da vacina, segundo levantamento da ONG Todos pela Educação com
base no Datasus. Noventa e oito por cento dos estudantes estão em escolas com
água potável, que dizer de água para lavar as mãos? Onde houver falhas nos
cuidados com protocolos ou salas de aula pouco arejadas, soluções devem ser
encontradas rapidamente sem que se fique prisioneiro de um discurso derrotista.
A vigilância com eventuais surtos deve, claro, ser constante.
Seja como for, a volta às aulas presenciais
deve ter prioridade máxima. O papel da escola vai muito além da transmissão de
conteúdo. Ela tem também uma função crucial no desenvolvimento de competências
sociais e não cognitivas, essenciais no mundo de trabalho. É isso que as
crianças perdem quando aprendem apenas remotamente.
O Ministro da Educação, Milton Ribeiro, defendeu
em audiência no Senado o retorno às aulas presenciais. Ribeiro deve aliar ações
concretas às suas falas. O governo federal tem o dever de apoiar estados e
municípios. O Brasil não pode esperar mais para recuperar o tempo de ensino
perdido. Está em jogo o futuro das nossas crianças — e do país.
Recusa ideológica em apoiar festival de
jazz é prova do atraso da Funarte
O Globo
A tesoura ideológica do governo voltou a
cortar. A Fundação Nacional de Artes (Funarte) deu parecer contrário a que o
Festival de Jazz do Capão, realizado há dez anos na Chapada Diamantina, na
Bahia, possa captar recursos pela Lei Rouanet. Até aí, nada demais. É seu papel
selecionar projetos que concorrem ao incentivo. O problema é o motivo alegado.
Segundo o parecer da Funarte, a porta se fechou devido a uma publicação na
página oficial do festival em que o evento era apresentado como “antifascista”
e “pela democracia”.
Permeado por citações religiosas, o parecer
concluiu que o festival caracteriza “desvio de objeto e risco de malversação do
recurso público”. O produtor executivo do evento, Tiago Tao, classificou a
decisão como censura: “O documento não é um parecer técnico, pois não há
qualquer menção à programação. E a gente sabe que o governo usa argumentos de
teor ideológico que beiram a bizarrice”.
Ao GLOBO, a Funarte disse que se tratava de
um problema pontual, atribuído ao técnico que assinou o parecer — que nem está
mais no órgão —, e não a uma política que rejeita projetos não alinhados ao
governo. O argumento não resiste às redes sociais. “Quer brincar de fazer
evento político/ideológico? Então faça com dinheiro privado”, disse o
secretário de Incentivo e Fomento à Cultura, André Porciuncula, num post
compartilhado pelo secretário Especial da Cultura, Mario Frias.
Após a repercussão do caso, o Ministério
Público Federal (MPF) abriu procedimento para apurar se houve violação aos
princípios da legalidade, impessoalidade e do Estado laico. A Fundação Coelho
& Oiticica, do escritor Paulo Coelho e da artista plástica Christina
Oiticica, se ofereceu para patrocinar o festival. Mas a questão não se encerra
aí. Situações semelhantes têm se repetido desde o início do governo, numa
afronta à cultura e à liberdade de expressão.
No início do mês, a Agência Nacional do
Cinema (Ancine) indeferiu projeto de um documentário sobre o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso (“O presidente improvável”) que, em 2018, já recebera
parecer favorável do órgão. Em 2019, o governo cancelou o edital para séries de
temática LGBT na TV pública depois que o presidente Jair Bolsonaro criticou
finalistas que concorriam pelas categorias “diversidade de gênero” e
“sexualidade”. Ele já defendera o uso de “filtros” nas produções aprovadas pela
Ancine.
A tentativa bolsonarista de forçar a
ideologia não acontece somente na cultura. Recentemente, o ministro da
Educação, Milton Ribeiro, manifestou intenção de ter acesso antecipado às
questões do Enem, manobra tosca para vetar questões cuja temática desagradasse
ao governo. Diante do mal-estar, acabou recuando do desatino. Não se podem usar
os órgãos públicos, instituições de Estado, para impor filtros ao pensamento de
quem quer que seja, atirando numa fogueira a Constituição. Como disse a
ministra Cármen Lúcia num julgamento de 2015 que entrou para a história, “cala
a boca já morreu”. É sempre bom lembrar.
CPI ganha tempo, mas deve mostrar serviço
no recesso
Valor Econômico
É o dever de casa que precisa ser feito
para que a CPI retorne num ritmo acelerado
Evitou-se, na quarta-feira passada, que a
CPI da Covid tivesse um desfecho melancólico: acertadamente, o presidente do
Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), interrompeu por alguns instantes as votações
que o plenário da Casa realizava e anunciou a prorrogação dos trabalhos do
colegiado por 90 dias.
“Peço licença ao plenário para referir-me à
Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, cujo prazo de encerramento dos
90 dias iniciais recai no dia 25 de julho de 2021. Nós teremos amanhã sessão do
Congresso Nacional para apreciação da Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Portanto, há uma expectativa de aprovação da LDO e, consequentemente, do
recesso parlamentar, de modo que o prazo da CPI ficaria suspenso e aí então, nesta
hipótese, se encerraria no dia 7 de agosto de 2021”, afirmou Pacheco, ao
iniciar sua fala. “Portanto, sendo esta a sessão de hoje a última sessão do
Senado Federal antes do recesso parlamentar, impõe-me, valendo-me do regimento
e do direito da minoria, comunicar ao plenário que recebi, como presidente,
requerimento, do senador Randolfe Rodrigues e outros senadores, solicitando a
[prorrogação do prazo da CPI da Pandemia por 90 dias. O requerimento lido
contém subscritores em número suficiente para prorrogar o prazo da Comissão
Parlamentar de Inquérito, nos termos do artigo 152 do regimento interno, e será
publicado para que produza os devidos efeitos”, acrescentou, dando um fim a uma
disputa que corria nos bastidores.
A decisão de Pacheco não veio na velocidade
esperada por senadores independentes e integrantes da oposição, que há tempos
cobravam um posicionamento do presidente da Casa e chegaram, inclusive, a levar
o caso para o Supremo Tribunal Federal (STF). Nos bastidores, dizia-se que uma
demora excessiva poderia dar tempo para o governo convencer alguns
parlamentares a retirarem as assinaturas do requerimento.
Os governistas, contudo, não conseguiram
esvaziar a CPI. Bom para o Brasil.
Está clara a importância dos trabalhos do
colegiado nos esforços do Legislativo para elucidar potenciais desmandos na
condução do enfrentamento da crise sanitária e apontar responsáveis. O escopo
da comissão é, aliás, claro: apurar as ações e omissões do governo federal no
enfrentamento da moléstia e, em especial, no agravamento da crise sanitária no
Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados, além das
possíveis irregularidades envolvendo recursos federais.
Em cerca de três meses, já foram colhidos
indícios importantes sobre o que se passou desde o início da pandemia, tanto no
campo das “ações” do governo quando em relação às “omissões”. Está claro, por
exemplo, que o governo não se empenhou o suficiente para promover um
comportamento adequado da população diante de um poderoso inimigo, o novo coronavírus.
Faltou um esforço de comunicação, por parte do Executivo, para orientar o
brasileiro a como se proteger.
Sobram indícios, também, sobre um grupo
paralelo de assessoramento com acesso direto ao gabinete presidencial. Esta
equipe, mesmo que integrada por alguns médicos, ajudou a descolar o Brasil das
melhores práticas observadas mundo afora. A tese da imunidade de rebanho
mostrou-se um risco à saúde pública.
A existência desse chamado “gabinete
paralelo” ainda ajudou, na visão da cúpula da CPI, a enfraquecer o Ministério
da Saúde, órgão que deveria ser visto por toda a federação como ponto de
referência nos esforços de coordenação nacional antes, durante e depois da
crise. Sua autoridade, porém, foi sendo minada dia após dia.
Outra frente de apuração foi como se deu a
aposta do governo em medicamentos que não deveriam ser usados no combate à
covid-19 e as causas da demora na compra de vacinas. Neste caso específico, a
CPI começou a jogar luz nas últimas semanas sobre os possíveis motivos do
desprezo das autoridades do governo federal em relação a alguns imunizantes e a
estranha celeridade dessas mesmas autoridades quanto a outras propostas.
Foi acertada, portanto, a decisão do
presidente do Senado de prorrogar os trabalhos da CPI. Agora, cabe aos
integrantes da comissão arregaçarem as mangas. Neste sentido, o recesso
parlamentar pode acabar ajudando aqueles que querem aproveitar as próximas
semanas para analisar os documentos que se acumulam nos arquivos da comissão.
Este é o dever de casa que precisa ser feito, para que a CPI retorne do recesso
num ritmo de trabalho já acelerado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário