O Globo
Convenhamos: ninguém fica bem numa cama de
hospital. Os lençóis e a roupa usados pelo internado sempre parecem
amarfanhados e do tamanho errado. Nenhum paciente com uma sonda nasogástrica a
lhe sair pela narina, uma bolsa ligada à jugular (para nutrição parenteral) e
várias outras sondas e bolsa no peito tem algo de atraente. Assim como nada tem
de formoso o abdômen nu e várias vezes remendado de quem, como o presidente
Jair Bolsonaro, se aproxima dos 70 anos. Expor-se assim voluntariamente, de
caso pensado e ângulo frontal calculado, só mesmo um político necessitado de
vitimização. Costuma funcionar para quem depende da convicção irrestrita e
irracional de seus seguidores/eleitores.
A internação do capitão quase conseguiu desviar a atenção nacional de outras agruras. O filho Zero Três do governante, o deputado Eduardo Bolsonaro, chegou a divulgar, por ignorância ou má-fé, a informação falsa de que o pai havia sido entubado — confundir um tubo traqueal com uma sonda nasogástrica não é coisa banal para quem está rodeado de médicos. Perfis robóticos alinhados ao bolsonarismo também trataram de disparar mensagens sugerindo que um exame de sangue do presidente revelara altas doses de chumbo. Em outras palavras, o presidente poderia ter sido vítima de uma tentativa de envenenamento, teria roçado a morte! Uma boa teoria da conspiração sempre funciona para quem nela quer acreditar.
Como se veria ao longo da semana, a
obstrução intestinal que levou Bolsonaro a ser internado primeiro no Hospital
das Forças Armadas, em Brasília, depois transferido para o Hospital Vila Nova
Star, em São Paulo, foi séria. O quadro poderia ter exigido nova cirurgia, mas
pôde ser resolvido com a retirada de 1 litro de conteúdo fecal do paciente.
Pelo menos até a tarde de sexta-feira, o capitão já se mostrava pimpão,
reforçando a crença de seus apoiadores em que, além de mito, também é
milagroso.
Diante do descarte de uma intervenção
cirúrgica por ora, com o quadro evoluindo “satisfatoriamente”, o capitão tratou
de testar sua popularidade no estrelado hospital. Vestindo bermuda, tênis e
camiseta, passeou por leitos de outros internados e tirou foto com pelo menos
uma internada, ambos sem máscara. Também circulou pelos corredores, sempre sem
máscara e pilotando o suporte de sondas. Concedeu uma entrevista (à distância)
ao apresentador Sikêra Júnior no quarto, com a ilustre presença do cirurgião
gástrico Antonio Macedo.
Bastante estranho o protocolo do Vila Nova
Star ao permitir que pacientes circulem sem máscara e façam visitas-surpresa a
outros internados em pleno rigor pandêmico. Mais provável que tenha sido uma
exceção à regra, uma cortesia midiática do hospital ao presidente. Nada tão
diferente, no fundo, da liberalidade oferecida a Bolsonaro pela empresa aérea
Azul algumas semanas atrás. Como foi amplamente divulgado, o presidente se
encontrava no aeroporto de Vitória quando lhe ocorreu entrar de surpresa num
avião comercial para cumprimentar os passageiros já embarcados. Entrou pela
porta frontal, retirou a máscara para fotos com a tripulação, recebeu aplausos
e apupos e retornou ao saguão de embarque. Não ocorreu aos agentes de segurança
encarregados da proteção do chefe impedir o arroubo. Mesmo que o fizessem, o
capitão daria de ombros. Tampouco ocorreu à Azul, responsável pela segurança
dos passageiros, evitar a carteirada presidencial. Ao contrário, a empresa
ainda jogou a responsabilidade nos ombros do comandante do voo.
É o Brasil de regras paralelas, chefiado
por um capitão exibicionista.
Mais de cinco décadas atrás, em 8 de
novembro de 1965, o então presidente dos Estados Unidos, Lyndon B. Johnson, foi
submetido a uma cirurgia para retirada simultânea da vesícula biliar e de uma
pedra na uretra. L.B.J. ascendera ao poder de supetão havia menos de cem dias,
e o país ainda estava traumatizado com o assassinato de John F. Kennedy dois
anos antes. Uma segunda morte seria inimaginável. À época, Johnson fizera uma
única exigência: a cirurgia deveria ser realizada numa sexta-feira (ele fora
internado dias antes) para evitar um sobressalto em Wall Street. Deu tudo
certo, e nada foi escondido do público. Ainda assim, persistiam rumores de que
ele fora operado de um câncer, e não da vesícula. O que fez o presidente?
Informou-se com a junta médica sobre o exato traçado das cicatrizes de uma
retirada da vesícula e de uma cirurgia exploratória de câncer abdominal. Eram
bastante distintas.
Foi por isso, e apenas por isso, que
Johnson convocou uma histórica entrevista coletiva no heliponto do hospital,
levantou a camisa, expôs o feio barrigão e ostentou a gigantesca e ainda crua
cicatriz que enterrou os boatos. A nenhum governante de país civilizado, nem
mesmo a L.B.J. —cujos linguajar, modos e temperamento podiam ser de uma crueza
ímpar —, ocorreria postar autorretratos hospitalares ou ostentar cicatrizes
pós-cirúrgicas como distintivos. Mas Jair Bolsonaro não é um governante de país
civilizado. É um governante não civilizado de um país em busca de seu tempo
perdido.
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