domingo, 18 de julho de 2021

Luiz Sérgio Henriques* - As democracias (ainda) sob cerco

O Estado de S. Paulo

Há algo profundamente inquietante e inédito na cruzada global da direita autocrática

Não pode surpreender tanto assim que no programa ultradireitista, nesta e em outras plagas, o assalto ao sufrágio universal, às eleições e à rotatividade no poder ocupe lugar absolutamente central. Deixam de importar os processos eleitorais em si, o modo efetivo como se desenvolvem, o grau maior ou menor de confiança que inspiram nos cidadãos. Quer transcorram lisamente, como tem sido possibilitado pelas urnas eletrônicas brasileiras, quer mostrem falhas e ineficiências, como ocorre com os arrastados e anacrônicos pleitos norte-americanos, o fato é que denunciar fraudes e espalhar suspeitas, minando dolosamente a legitimidade do vencedor e das próprias instituições, são atitudes que definem, de modo “orgânico”, o item central do manual de instruções patrocinado pelas forças subversivas do nosso tempo.

A historiadora Anne Applebaum, ao escrever sobre o declínio das democracias e a sedutora atração do moderno autoritarismo, chama a atenção para a convergência até mesmo de linguagem entre três perdedores recentes. Longe de reconhecerem a derrota que, em países e circunstâncias diferentes, lhes foi imposta, Donald Trump, Keiko Fujimori e Benjamin Netanyahu nem sequer esperaram a contagem final dos votos para se declararem vítimas de tramas e maquinações perversas. O vocabulário que empregam é perturbadoramente semelhante, ressalvadas algumas poucas particularidades. Suas palavras poderiam ser trocadas umas pelas outras e nem perceberíamos a diferença.

Para nós, aliás, nada disso é novidade: observando nosso contexto, esse também é o veneno que nestes dois últimos anos e meio temos provado em doses certamente não homeopáticas.

Consideremos o fenômeno a partir da sua matriz trumpista. Os otimistas dirão que, afinal, Trump “não passou”, que a barreira erguida por Joe Biden, um moderado, com a sustentação da esquerda do seu partido, claramente renovou o consenso majoritário em torno das regras escritas e não escritas da democracia. Dirão mesmo, com acerto, que personagens políticos como Biden são os mais bem talhados para projetar pontes num momento de polarização irracional e destrutiva, que corta transversalmente a sociedade e não poupa nenhum âmbito, até mesmo, para citar um caso de vida ou morte, o ambiente relativo aos meios e modos de combater um mal universal como a pandemia.

No entanto, deixando de lado por um momento o alívio advindo com o triunfo de Biden, há algo inédito e profundamente inquietante na cruzada global da direita autocrática. Antes de mais nada, valendo-se da situação criada pelas dores do parto de sociedades de novo tipo, cuja trama econômica se espalha em nível planetário, mas cujos recursos políticos estão basicamente confinados às fronteiras nacionais e não protegem os desfavorecidos, os novos cruzados mandam às favas os escrúpulos de consciência de um modo que os torna muito semelhantes aos seus avós fascistas dos anos 1930.

A demagogia irracionalista, então como agora, parece não ter limites. De fato, vai além da mobilização de interesses propriamente econômicos, que, por mais contrastantes que sejam, podem em princípio ser recompostos em função de um bem maior e comum, como o atesta o “compromisso social-democrata” que marcou toda uma fase de progresso no Ocidente. É neste quadro, de resto, que se inserem as tenebrosas “guerras culturais”, que buscam substituir o conflito político normal, estruturado segundo interesses materiais e orientações de valor mais razoáveis, por uma interminável conflagração entre valores últimos e irreconciliáveis, refratários por definição a uma síntese democrática.

Processos eleitorais não teriam como ficar imunes a esta dramática passagem de época. Passaram também a estar envoltos numa espessa nuvem de paranoia e mistificação, sob a qual derrotados em eleições limpas se proclamam vencedores e arrastam milhões de prisioneiros de um universo virtual autorreferenciado. Descortina-se um panorama orwelliano em que um vitorioso, como Jair Bolsonaro em 2018, afirma ter obtido o mandato em urnas fraudadas, sem que ninguém saiba como nem quando. Ou declara terem sido adulteradas as eleições de 2014, sem que a suposta vítima tenha percebido. E, ameaçando virar a mesa em 2022, requer que os votos sejam em papel e, por isso, “auditáveis”, embora a crônica jornalística registre que, nos Estados Unidos, a auditoria dos votos em papel se tornou um exercício de fanáticos com momentos cômicos, como quando, ainda agora, se procuram fibras de bambu nas cédulas que teriam vindo prontas de certo país asiático para beneficiar Joe Biden...

Os toques de comédia não podem nos distrair. Ontem como hoje, em 1930 ou agora, há um assalto à razão, à democracia e à ideia de bem comum. Uma vantagem é que as forças que o promovem não se disfarçam nem ocultam seus truques, que estão todos à vista. O que pode detê-las é uma frente muito ampla em defesa das regras do jogo e da lealdade entre os contendores para que paixões, conflitos e contradições humanas, ao fim e ao cabo, se expressem de modo produtivo.

 

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil

 

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