O Estado de S. Paulo
Há algo profundamente inquietante e inédito
na cruzada global da direita autocrática
Não pode surpreender tanto assim que no programa ultradireitista, nesta e em outras plagas, o assalto ao sufrágio universal, às eleições e à rotatividade no poder ocupe lugar absolutamente central. Deixam de importar os processos eleitorais em si, o modo efetivo como se desenvolvem, o grau maior ou menor de confiança que inspiram nos cidadãos. Quer transcorram lisamente, como tem sido possibilitado pelas urnas eletrônicas brasileiras, quer mostrem falhas e ineficiências, como ocorre com os arrastados e anacrônicos pleitos norte-americanos, o fato é que denunciar fraudes e espalhar suspeitas, minando dolosamente a legitimidade do vencedor e das próprias instituições, são atitudes que definem, de modo “orgânico”, o item central do manual de instruções patrocinado pelas forças subversivas do nosso tempo.
A historiadora Anne Applebaum, ao escrever
sobre o declínio das democracias e a sedutora atração do moderno autoritarismo,
chama a atenção para a convergência até mesmo de linguagem entre três
perdedores recentes. Longe de reconhecerem a derrota que, em países e
circunstâncias diferentes, lhes foi imposta, Donald Trump, Keiko Fujimori e
Benjamin Netanyahu nem sequer esperaram a contagem final dos votos para se
declararem vítimas de tramas e maquinações perversas. O vocabulário que
empregam é perturbadoramente semelhante, ressalvadas algumas poucas
particularidades. Suas palavras poderiam ser trocadas umas pelas outras e nem
perceberíamos a diferença.
Para nós, aliás, nada disso é novidade:
observando nosso contexto, esse também é o veneno que nestes dois últimos anos
e meio temos provado em doses certamente não homeopáticas.
Consideremos o fenômeno a partir da sua
matriz trumpista. Os otimistas dirão que, afinal, Trump “não passou”, que a
barreira erguida por Joe Biden, um moderado, com a sustentação da esquerda do
seu partido, claramente renovou o consenso majoritário em torno das regras
escritas e não escritas da democracia. Dirão mesmo, com acerto, que personagens
políticos como Biden são os mais bem talhados para projetar pontes num momento
de polarização irracional e destrutiva, que corta transversalmente a sociedade
e não poupa nenhum âmbito, até mesmo, para citar um caso de vida ou morte, o
ambiente relativo aos meios e modos de combater um mal universal como a
pandemia.
No entanto, deixando de lado por um momento
o alívio advindo com o triunfo de Biden, há algo inédito e profundamente
inquietante na cruzada global da direita autocrática. Antes de mais nada,
valendo-se da situação criada pelas dores do parto de sociedades de novo tipo,
cuja trama econômica se espalha em nível planetário, mas cujos recursos
políticos estão basicamente confinados às fronteiras nacionais e não protegem
os desfavorecidos, os novos cruzados mandam às favas os escrúpulos de consciência
de um modo que os torna muito semelhantes aos seus avós fascistas dos anos
1930.
A demagogia irracionalista, então como
agora, parece não ter limites. De fato, vai além da mobilização de interesses
propriamente econômicos, que, por mais contrastantes que sejam, podem em
princípio ser recompostos em função de um bem maior e comum, como o atesta o
“compromisso social-democrata” que marcou toda uma fase de progresso no
Ocidente. É neste quadro, de resto, que se inserem as tenebrosas “guerras
culturais”, que buscam substituir o conflito político normal, estruturado
segundo interesses materiais e orientações de valor mais razoáveis, por uma
interminável conflagração entre valores últimos e irreconciliáveis, refratários
por definição a uma síntese democrática.
Processos eleitorais não teriam como ficar
imunes a esta dramática passagem de época. Passaram também a estar envoltos
numa espessa nuvem de paranoia e mistificação, sob a qual derrotados em
eleições limpas se proclamam vencedores e arrastam milhões de prisioneiros de
um universo virtual autorreferenciado. Descortina-se um panorama orwelliano em
que um vitorioso, como Jair Bolsonaro em 2018, afirma ter obtido o mandato em
urnas fraudadas, sem que ninguém saiba como nem quando. Ou declara terem sido
adulteradas as eleições de 2014, sem que a suposta vítima tenha percebido. E,
ameaçando virar a mesa em 2022, requer que os votos sejam em papel e, por isso,
“auditáveis”, embora a crônica jornalística registre que, nos Estados Unidos, a
auditoria dos votos em papel se tornou um exercício de fanáticos com momentos
cômicos, como quando, ainda agora, se procuram fibras de bambu nas cédulas que
teriam vindo prontas de certo país asiático para beneficiar Joe Biden...
Os toques de comédia não podem nos
distrair. Ontem como hoje, em 1930 ou agora, há um assalto à razão, à
democracia e à ideia de bem comum. Uma vantagem é que as forças que o promovem
não se disfarçam nem ocultam seus truques, que estão todos à vista. O que pode
detê-las é uma frente muito ampla em defesa das regras do jogo e da lealdade
entre os contendores para que paixões, conflitos e contradições humanas, ao fim
e ao cabo, se expressem de modo produtivo.
*Tradutor e ensaísta, é um dos
organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
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