domingo, 18 de julho de 2021

Livro | Ferreira Gullar / Poeta da liberdade

“Toda Poesia” reúne em um único volume a obra de Ferreira Gullar, um dos maiores nomes da literatura brasileira. Entre os quase 500 textos, destaque para “Poema Sujo”, criação feita no exílio que alterna lembranças e a luta contra a ditadura

Felipe Machado - IstoÉ

Em 1976, durante turnê na Argentina com Toquinho e Miúcha, Vinicius de Moraes encontrou em uma festa o poeta Ferreira Gullar, exilado em Buenos Aires após ser perseguido pela ditadura militar. Em meio a caipirinhas e feijoada, Gullar tirou do bolso folhas de papel amassado. A confraternização silenciou para ouvi-lo recitar “Poema Sujo”, seu manifesto catártico criado a partir das memórias de infância no Maranhão e da vontade de voltar a ser livre. No dia seguinte, Vinicius pediu o texto ao amigo: queria gravá-lo. Ao fim da turnê, trouxe a fita cassete para o Brasil, fez cópias e a distribuiu entre amigos. Foi assim, de maneira torta e clandestina, que se espalhou pelo País a voz do poeta que não poderia mais ser calado.

 “Poema Sujo” é um dos destaques de “Toda Poesia”, belo volume da Companhia das Letras, que reúne a obra de Ferreira Gullar. Há diversas razões para compilar seus poemas em um mesmo livro, mas a principal delas é que isso nos permite acompanhar de maneira didática e cronológica a evolução do escritor. Isso não quer dizer que esse processo foi qualitativo, ou seja, que ele teria evoluído do pior para o melhor, longe disso. Até porque Gullar já nasceu poeta feito, pronto desde os 18 anos, quando publicou seu primeiro livro, “Um Pouco Acima do Chão”, em edição bancada por ele mesmo. “Toda Poesia” serve para navegar por suas fases e descobertas, como se estivéssemos assistindo ao desenvolvimento de seu raciocínio.

Começou parnasiano, formal na métrica e na rima. Dois anos depois mudou tudo, em “A Luta Corporal”. “Nos meus vinte anos cheguei à conclusão de que a poesia que deveria fazer era o contrário daquela que eu fazia”, diz ele, no posfácio assinado por Antonio Cícero. Livre da matemática parnasiana, caiu nos braços dos concretistas — os irmãos Campos e Décio Pignatari o convidaram para integrar o movimento. Veio então “O Vil Metal” e a fase neoconcreta – fórmulas e amarras das quais ele também logo se livrou. Abraçou então os romances de cordel, que fizeram florescer nele, em pleno árido sertão, a luta pela justiça social que o acompanharia pelo resto da vida.

O Gullar que surgiu a partir de “Dentro da Vida Veloz” foi o mesmo que concebeu “Poema Sujo” — e cuja liberdade não se revelava só na forma, mas na temática. Não cabia mais em nenhum estilo ou escola, voava para eternizar as palavras do jeito que sua cabeça as processava. Sobre o título, deu duas explicações. “O poema é sujo como o povo brasileiro, como a vida do povo brasileiro”, definiu, primeiro. E completou, mais racional: “ele é sujo porque, estilisticamente, tem referências de todas as fases anteriores. Comecei a elaborar uma linguagem que foi se tornando mais rigorosa, mais exigente e despojada, até esse ‘Poema Sujo’, onde faço explodir minha própria linguagem.”

Vieram, então, “Na Vertigem do Dia” (1980), “Barulhos” (1987), “Muitas Vozes” (1999). O derradeiro “Em Alguma Parte Alguma”, publicado em 2010, trouxe a síntese de todas as fases: do garoto de São Luís ao exilado na Argentina, da rigidez concretista à maturidade diante da morte, ocorrida no Rio de Janeiro, aos 86 anos, em 2016. Vinicius dizia que Gullar era o “último grande poeta brasileiro”. Não há como saber se foi o último — sabemos apenas que, sem dúvida, foi grande.

Poema Sujo
(trecho)

Perdeu-se na carne fria
perdeu-se na confusão
de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão
das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
mudou de cara e cabelos
mudou de olhos e risos
mudou de casa e de tempo:
mas está comigo

está perdido comigo
teu nome
em alguma gaveta

Que importa um nome
a esta hora do anoitecer
em São Luís do Maranhão
à mesa do jantar
sob uma luz de febre
entre irmãos e pais
dentro de um enigma?

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