O Estado de S. Paulo
Palavras do presidente ignoram o proceder
com a dignidade e o decoro do seu cargo
O impacto da covid-19, que se vem prolongando no tempo, é opressivo. Trouxe uma ruptura da “normalidade do normal”. Vem vitimando contínua e indiscriminadamente e impondo à nossa gente o mastigar do pão da aflição e o sorver o amargor do sofrimento. As necessárias medidas de isolamento afetaram todos os setores das atividades, com graves consequências econômicas e humanas. Impuseram significativos limites ao convívio social. Deram a força do concreto ao esquema do pensar e da expressão do clássico tópos literário do “mundo às avessas”. Este articula com a ruptura da “normalidade do normal” um estado lamentável das coisas, instigando a indignação. São as razões mais abrangentes dessa indignação com a maneira como o governo federal vem conduzindo as políticas públicas de saúde em nosso país o que norteia este artigo.
A pandemia do coronavírus surpreendeu
governantes e governados. É um fato excepcional, que resulta da conjunção pouco
frequente de certas circunstâncias. Não foi algo indeterminado que se esgota no
âmbito do acaso. Mostrou o alcance irradiador do inesperado, dificilmente
previsível pela escala global que assumiu quando se compara seu impacto e sua
duração com prévias conhecidas pandemias do mundo contemporâneo.
O coronavírus pôs na pauta o novo dos riscos que vêm
trazendo uma grande crise global da saúde pública. Esta se propaga por obra da
porosidade das fronteiras, que internalizam, e ao mesmo tempo magnificam, pela
dinâmica da era digital, os problemas internacionais na vida dos países. Evidenciou
que as sociedades contemporâneas, inseridas para o bem e para o mal num mundo
interconectado e interdependente, são sociedades de risco. Correm muito mais do
que no passado o risco de se afundarem, vitimadas pelo desgorgolamento (a
decapitação) que Gil Vicente, recorrendo ao tópos do
mundo às avessas, se referiu no Auto
Pastoril Português.
Uma sociedade de riscos, incluídos os
manufaturados pela ação humana, como é o caso do meio ambiente e da
sustentabilidade, exige a capacidade de orientar-se no mundo “que não dá a
ninguém inocência nem garantia”, como dizia Guimarães Rosa. Pressupõe, na
condução das políticas públicas, a responsabilidade e a seriedade na gestão de
riscos. É o caso dos desafios da diplomacia das vacinas em matéria de política
externa e dos grandes temas do multilateralismo da governança global.
Num mundo caracterizado pela velocidade dos
processos com os quais a cultura científica da pesquisa básica e aplicada
expande as fronteiras do conhecimento, a gestão dos riscos transcende o clássico
“standard” da prudência. Requer a presença do papel da ciência e do
conhecimento e dos seus valores de racionalidade e transparência, para
identificar apropriadamente os riscos, mitigá-los e controlá-los.
Daí a inconformidade com este estado
lamentável das coisas em nosso país proveniente da postura negacionista do presidente e
de seu governo quanto ao papel da ciência e do conhecimento no enfrentamento da
crise do coronavírus, que aprofunda um “mundo às avessas”.
O negacionismo se expressa por ações e omissões
que a CPI está apurando. São agravadas pelas palavras do presidente. Estas
ignoram o proceder com a dignidade e o decoro do cargo, que é o “standard” de
conduta presidencial lícita, prevista na Lei 1.079, de 10 de abril de 1950.
Dignitas – dignidade –, ensina Cicero,
é ter bons sentimentos para com a res
publica e dar provas aos homens de bem desses sentimentos.
Decoro, que, como dignidade, provém do latim decet, o que convém, o que é
apropriado, manifesta-se pela compostura no exercício da função pública. Nem um
nem outro se encontram nas palavras de ruptura e improvisações mal concebidas
do presidente, que alimentam a insegurança, corroem a confiança e dividem o
País.
Não atendem ao papel que se espera de
liderança, que é o de definir construtivamente rumos para a sociedade. São
incompatíveis com o zelo que deve presidir as políticas públicas de saúde numa
situação-limite como a da pandemia.
Ensina o padre Antônio Vieira que “o
verdadeiro zelo teme o perigo e trata dos remédios”, advertindo que “o maior
perigo não é quando se teme o perigo, é quando se teme o remédio”. Os remédios
são aqueles que o estágio atual do conhecimento e da ciência, validados pelos
pesquisadores nacionais e internacionais, indica em matéria de contenção e
mitigação dos riscos da pandemia. Entre eles, vacinas e o seu papel imunizador,
máscaras, isolamento social, administração da sobrecarga dos cuidados
hospitalares a serem implantados sem atropelos e desvios de qualquer natureza e
sem o ímpeto desagregador das competências concorrentes dos Estados e dos
municípios.
O presidente ignora a advertência do padre Antônio Vieira: teme o perigo e com a opacidade intencional da consciência ignora os remédios. Dessa maneira vai prolongando o mal-estar do nosso quotidiano de um “mundo às avessas” com suas omissões, ações e palavras, reveladoras de um modo de ser que não se ajusta à dignidade e ao decoro de seu cargo.
*Professor emérito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
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