Valor Econômico
Projeção do FMI de déficit fiscal de 1,7%
do PIB neste ano é um resultado exitoso
Assisti durante minha vida profissional
várias vezes o Fundo Monetário Internacional - o terrível FMI da minha
adolescência - ser chamado a ajudar o Brasil a sair de uma crise financeira
grave. Em uma delas fiz parte da equipe que foi a Nova York revelar ao sistema
bancário internacional que iríamos parar de pagar nossa dívida externa. Era a
então eufórica moratória externa do presidente José Sarney.
Mas agora é a primeira vez que vejo o FMI
voluntariamente vir ajudar o Brasil a enfrentar a crise de confiança em nossas
contas fiscais sob pesadas acusações dos segmentos mais liberais de nossa
”intelligentsia” econômica.
Na última quinta-feira, o jornal Valor Econômico trouxe a seguinte manchete “FMI projeta déficit primário de 1,7% do PIB em 2021 e a volta de superávit em 2024”. Em meio ao intenso debate que vem ocorrendo no mercado financeiro, a manchete do Valor representa um verdadeiro resgate de confiança da nossa situação fiscal. Em outras palavras, suas declarações mostram que estamos muito longe da situação de catástrofe - cujo título mais sofisticado é Dominância Fiscal - que um grande número de economistas do mercado diz já existir.
Como fica agora este grupo, confrontado com
os números oficiais do FMI, instituição cuja opinião representa o teste da
racionalidade econômica dos governos no mundo emergente principalmente? Quero
vê-los questionar a credibilidade técnica do Fundo, pois um déficit fiscal de
1,7% do PIB neste ano, depois do estímulo fiscal realizado no ano passado para
enfrentar aos efeitos da pandemia, é um resultado exitoso. Ele mostra que não
ocorreu a temida transformação de despesas eventuais para enfrentar a pandemia
em gastos perenes. Isto é verdade no caso do governo federal e, mais
pronunciado ainda, em relação a estados e municípios que receberam
significativas transferências do Tesouro para enfrentar a pandemia mas ficaram
impedidos de usá-las em gastos adicionais com pessoal principalmente.
Antecipo-me aos argumentos contrários à
minha posição, que sei que virão dizendo que a previsão do FMI para 2021 é
possível de ocorrer pois o crescimento da economia este ano será de quase 6%
pelo efeito estatístico da comparação com a profunda recessão do ano passado.
Mas respondo eu que só será possível chegar a um superávit fiscal em 2024 se o
crescimento médio entre 2022 e 2023 for algo da ordem de 3 % aa. Ou seja, não é
questão de opinião dizer que o comportamento fiscal subjacente à manchete é uma
marcha inexorável rumo ao precipício financeiro como anunciado em meio à
segunda onda da pandemia em junho de 2020.
Na minha coluna do mês passado chamei a
atenção do leitor para os erros de previsão cometidos pelos principais
analistas do mercado financeiro quando o segundo choque da covid nos atingiu no
ano passado. O relatório do FMI - ainda não divulgado oficialmente, mas com
suas principais conclusões adiantadas pelo Valor - mostra que os que ainda insistem em
anunciar o precipício fiscal mais à frente vão errar novamente. Esta sequência
de déficit fiscal de 10% do PIB em 2020 seguido de um outro de 1,7% em 2021 e
um superávit em 2024 só pode ocorrer se duas condições simultâneas ocorrerem:
de um lado o governo tiver o controle das despesas primárias e, de outro, se
ocorrer a normalização da arrecadação de impostos em função do crescimento
econômico.
Finalmente gostaria de trazer ao leitor
do Valor um
testemunho pessoal sobre as dificuldades que cercam a atividade dos
responsáveis pelas contas fiscais do Tesouro Federal ao longo de seu mandato.
Isto é verdade principalmente depois da criação da Secretaria do Tesouro, em
1986, no Ministério da Fazenda e a construção ao longo dos anos seguintes de
uma sofisticada matriz de informações sobre a evolução do caixa do governo.
Talvez estas dificuldades acabem por criar em economistas que passaram por esta
experiência - como Ana Vescovi e Mansueto de Almeida - um certo pessimismo
crônico sobre o comportamento das contas fiscais, como ocorreu com eles no meio
do ano de 2020.
Há alguns anos escrevi uma coluna na Folha
de São Paulo em homenagem a estes nossos heróis anônimos da responsabilidade
fiscal. Chamava-se “ A corrente de Plácido de Castro “ e reportava o leitor a
um fato histórico ocorrido no Acre no fim do século XIX e que levou a anexação
desta região ao território brasileiro. Foi uma espécie de exército irregular
formado por seringueiros da região comandado por Plácido os responsáveis pela
sua anexação final em 1903.
Na batalha final de sua campanha eles
usaram um navio gaiola para atacar o último reduto do exército boliviano às
margens de um rio da região. Mas havia uma pesada e forte corrente de aço
imobilizando a barcaça de fundo chato usada na região. Não tiveram os homens de
Plácido de Castro outra saída a não ser cortar a corrente com toscas limas de
aço. Para isto tinham que mergulhar no rio e começar a ação sob tiroteio dos
bolivianos. Muitos morreram nesta tentativa desesperada até que finalmente
conseguiram a vitória final.
Foi essa a imagem que usei para lembrar de
todos aqueles que durante mais de três décadas - como Ana e Mansueto - lutaram
para manter longe de nós a tão temida dominância fiscal. Talvez por isto tenham
assumido agora uma atitude tão negativa sobre o nosso equilíbrio fiscal.
Luiz Carlos Mendonça de
Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi
presidente do BNDES e ministro das Comunicações.
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