O Estado de S. Paulo
Gravidade das irregularidades tem
importância menor que a falta de apoio político no Congresso e na sociedade
Alguns argumentam que o fato de o Brasil,
em pouco mais de 30 anos, já ter abreviado, por meio de impeachments, o mandato
de dois presidentes legitimamente eleitos e existir o potencial risco de um
terceiro nos próximos meses seria um sinal de que algo não vai bem na
democracia brasileira.
Alega-se que um impeachment acentuaria a polarização política... aumentaria o conflito entre partidos... desenvolveria a sensação de crise política permanente e generalizada... chegaria a criar desconfiança nas próprias regras do jogo democrático.
Diferentemente de regimes parlamentaristas,
que dispõem de mecanismos flexíveis de término antecipado de governos, como o
voto de não-confiança ou mesmo a perda de maioria parlamentar pela saída de
parceiros da coalizão governista, presidencialismos não possuem outros
mecanismos capazes de quebrar a rigidez de mandato presidencial além do
impeachment.
Sem contar os 130 pedidos de impeachment já submetidos a Câmara dos Deputados contra
Bolsonaro, já ocorreram 193 pedidos durante o período de 1990 e 2018
no Brasil. Ou seja, somente um pouco mais de 1% dos pedidos foram de fato
efetivados.
Como demonstra Mariana Llanos e Anibal Perez-Linán no artigo Oversight or representation? Public Opinion and Impeachment Resolutions in Argentina and Brazil, esta marca é muito inferior às democracias parlamentaristas avançadas onde 5% dos votos de não-confiança iniciados levaram de fato a queda antecipada de seus governos.
Os autores sugerem que a existência de um
alto número de pedidos de impeachment sem sua concreta efetivação é o padrão
não apenas no Brasil, mas também em outros presidencialismos. Essa é uma
evidência de que o artifício institucional do impeachment faz parte do jogo
político.
Ou seja, antes de significar fragilidades
de desenho institucional, o uso frequente de impeachments representa momentos
de efervescência da democracia representativa, sendo também um sinal de
aprendizado político. O mais interessante é que o uso desse instrumento,
efetivado ou não, tem ocorrido sem rompimentos ou comprometimentos à
democracia.
Os pedidos de impeachment que se efetivaram
no Brasil seguiram as regras estabelecidas na Constituição e seus procedimentos
foram chancelados pela Suprema Corte, o que lhes conferiu legitimidade,
independentemente de alegações de uma suposta falta de merecimento dos
governantes penalizados.
A interrupção de mandatos presidenciais é
um fenômeno complexo que tem várias causas e determinantes, mas todos eles têm
um elemento em comum: a quebra de apoio parlamentar seguido da convergência de
interesses da maioria da sociedade contra o presidente de plantão. A gravidade
das irregularidades cometidas pelo governante, que configurariam potenciais
crimes de responsabilidade, assume um papel secundário nesse jogo. Portanto, é
ingenuidade comparar qual governante mereceria mais ou menos ter seu mandato
finalizado por uma decisão da maioria qualificada de parlamentares.
Como estratégia política, é evidente que o
impeachment interessa a alguns e a outros não. Sempre quem perde com o
impeachment tende a alegar defensivamente que foi uma tentativa de golpe contra
quem recebeu o mandato da maioria dos eleitores.
Na conjuntura atual, uma parcela
considerável da população votaria no retorno do ex-presidente Lula ao poder
para evitar a reeleição de Bolsonaro. Entretanto, outro contingente expressivo
de eleitores está em busca de alternativas. Logo não votaria nem em Lula nem em
Bolsonaro, especialmente se essa alternativa for capaz de derrotar Lula ou
Bolsonaro no segundo turno. Assim, para Lula, seria vantajoso que Bolsonaro se
mantivesse na disputa de forma competitiva.
Se respeitados os procedimentos, um
possível impeachment de Bolsonaro não será um golpe – assim como não foi o de
Dilma –, ainda que possa servir como um “golpe de misericórdia” para a
candidatura de Lula.
*Cientista político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE)
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