O Globo
São tempos duros, talvez os mais difíceis,
porque conjugam o devastador governo Bolsonaro com uma terrível pandemia.
Consegui sobreviver, trabalhando
diariamente. Por volta das 20h, quando cessam minhas tarefas, como um sanduíche
e vou-me embora do Brasil. Através dos livros e documentários, percorri outros
países e épocas. Acompanhei a crise dos anos 20 na Europa e a efervescência
intelectual do continente. Vi conferências, como a de Max Weber, em Munique,
sobre a ciência. Aprendi a respeitá-la, mas também a reconhecer seus limites,
definidos por Tolstói: “Quem somos nós, o que devemos fazer?”. Uma pergunta que
nem a ciência nem a política respondem. Nada nos alivia da decisão de como
viver nossa vida.
No entanto, em tempos de pandemia, a
ciência pode evitar nossa morte. Por isso tornou-se o farol em tempos de
obscurantismo sanitário.
Percorri de novo os horrores do nazismo, da
colonização europeia na África, as histórias de mutilações que os belgas
levaram ao Congo, o coração das trevas, descrito por Conrad.
Acompanhei, dentro dos detalhes possíveis, o romance de um intelectual seduzido pelo nazismo e uma judia. Ele, acreditando que a morte é a realidade que faz o humano; ela, afirmando que é o fluxo de renascimento que nos define.
Nem sempre saí do Brasil para o exterior.
Às vezes, parti em busca de outras épocas em nosso território. As viagens
noturnas não são uma fuga da realidade. Não divido o dia entre dor e alívio
noturno. Nem sempre, depois de contar mortos por Covid-19, animais carbonizados
e medir a área destruída da floresta, busquei o paraíso.
Não era essa a ideia. A reorganização da
vida buscava descrever os horrores diurnos e refletir à noite sobre as
condições necessárias para que nunca se repetissem, no Brasil, sobretudo
governos de extrema-direita, já que pandemias são mais difíceis de evitar.
Confesso que ainda estou tateando na busca
da resposta. No entanto creio que é um debate essencial, sobretudo num país tão
seduzido por retropias. Há sempre um passado idílico para o qual se quer
voltar.
Um ponto de apoio para o futuro deve ser
uma ampla inclusão. Foram caminhos excludentes que semearam a ascensão da
extrema-direita no mundo. Não me refiro apenas aos que foram deixados para trás
pela globalização. Mas também pelos insatisfeitos com os serviços do Estado,
com o funcionamento da democracia, como vimos nas ruas em 2013. O próprio
universo cultural talvez tenha de se abrir mais para os que se sentem excluídos
nos debates que lhes parecem esnobes e distantes de seu cotidiano.
Esse é apenas um ponto do debate. Nesta
semana ficou mais uma vez claro que a redemocratização deixou de lado a questão
militar. É preciso impedir que as Forças Armadas degenerem em partido político.
Nesse particular, é urgente que o Congresso
brasileiro compreenda a urgência da volta aos quartéis e proclame uma decisão
quase tão importante quanto as Diretas no fim do século passado. Os militares
precisam deixar os cargos civis e, enquanto isso não acontecer, aceitar a ideia
de que são funcionários como os outros, sujeitos à transparência e à suspeição
em caso de desvios.
Corremos o risco de criar um partido armado
até os dentes, o que significaria um gigantesco retrocesso, a verdadeira
retropia sonhada por Bolsonaro.
Na semana passada, as Forças Armadas
lançaram uma nota intimidando o Congresso. Não é razoável pedir nossos votos
quando se tem medo da ameaça de militares. Também não é razoável afirmar que há
um lado corrupto nas Forças Armadas, mas sim apenas alguns indivíduos que se tornaram
suspeitos.
É preciso equilíbrio e firmeza, embora
essas duas qualidades se confundam. Equilíbrio na crítica e firmeza na luta
para remetê-los a suas funções constituicionais.
Aos poucos, vamos aprender a dizer “nunca
mais” para regimes autoritários no Brasil.
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