terça-feira, 6 de julho de 2021

Míriam Leitão - Crise hídrica e outras confusões

O Globo

Sair da negação e falar a verdade. Esse é o primeiro passo para o país enfrentar a crise hídrica. Há 20 anos foi assim e deu certo. O governo Bolsonaro permanece negando a gravidade da falta de água. Fez uma MP para criar um comitê de gestão, que pode tudo menos decidir pelo racionamento. Ontem foi anunciado aumento dos combustíveis, isso também afetará a tarifa de energia. A inflação sobe, a popularidade despenca, a CPI revela desmandos e corrupção e o governo tem medo de dizer a verdade sobre a crise hídrica.

A crise de 2001 foi provocada pela falta de planejamento, mas apesar de ser conhecido com “o apagão”, transformou-se num “case” de sucesso de gestão. Um dos gestores daquela crise de 2001 foi David Zylbersztajn, que na época era presidente da Agência Nacional do Petróleo. Ele compara:

– Tem agora uma repetição do erro do passado que foi entrar em negação, no início. Mas lá o sinal vermelho apareceu em maio. No dia primeiro de junho foi decretado o racionamento. Agora estamos em julho, o período seco está mais agudo e já perdemos mais de um mês em relação à ação tomada em 2001.

Ele acha que o risco de racionamento está muito alto, muito além do aceitável. A grande vantagem é que em 2001 mais de 80% da energia consumida no Brasil era hidráulica. Agora, um pouco mais de 60%. Foram desenvolvidas as energias eólica e solar, juntas têm mais de 10%, e continuam crescendo. Além disso, foi instalado o parque térmico de energia fóssil, e essas usinas, apesar de serem caras e sujas, foram colocadas no sistema. Tudo isso atenuou o problema, mas ao mesmo tempo, aumentou o uso competitivo da água.

As hidrelétricas mais velhas eram com reservatórios, e as que foram construídas depois são a fio d’água. Nos anos 80 chegou a haver planejamento plurianual para cinco anos.

– Agora não tem nem para um. E nem tem como ser diferente. Pegue Belo Monte, o lago que estava previsto iria inundar aldeias indígenas e uma parte da cidade de Altamira. Belo Monte segurou a produção de energia até agora, mas vai começar a cair drasticamente– disse David.

A construção da usina produziu um grande estrago ambiental mesmo sendo sem o reservatório previsto. E tem uma oscilação na capacidade de produção enorme, que começa a declinar justamente agora no período mais seco. Em agosto e setembro estará gerando em torno da metade da sua capacidade. O que mudou fortemente nesse período de vinte anos foi a eólica que chegou a segurar, em alguns dias, 100% da demanda do Nordeste. A escassez é principalmente no Sudeste, onde está 60% a 70% da acumulação necessária do Brasil todo.

– O sistema de transmissão está mais parrudo hoje do que era em 2001, mas o problema é manter a transmissão nos horários de pico. O governo tinha que conseguir deslocar o horário de pico, ou, como se diz na pandemia, achatar a curva – explica David.

E como fazer isso? Como foi feito em 2001, quando o governo abriu o jogo e falou claro. Sob o comando do então ministro chefe da Casa Civil, Pedro Parente, o governo admitiu o tamanho do problema, assumiu o seu erro, e passou a mobilizar a sociedade.

Um livro lançado recentemente conta o que foi aquele período. “Curto-Circuito”, de Roberto Rockmann e Lucio Mattos.

– Uma coisa que fizemos naquela época foi distinguir os consumidores. A bandeira vermelha não pode ser para todo mundo, tem que ser para quem consome mais. Quem tem renda baixa, será muito prejudicado. O pequeno negócio, também.

O que fez a diferença em 2001 foi um ambiente de diálogo permanente com o país. Parente e todos os integrantes da Câmara que geriu a crise falavam o tempo todo, com a imprensa, com todos os setores envolvidos. Virou uma mobilização nacional. O consumo demorou uns sete anos para voltar ao que era porque o país ficou mais eficiente.

– Ninguém tinha visto aquilo, reduzir a carga de um país em 20% pelo lado da demanda. Essa conversa franca com a sociedade ajudou. É como se a população dissesse, “vocês têm culpa, mas eu vou ajudar”. O sinal econômico funcionou, quem reduzisse o consumo pagava menos – conta David.

Agora, o governo prefere dizer que não vai ter racionamento. Só poderá evitá-lo se tomar as medidas certas. E nada será resolvido à moda militar, mas sim pela boa gestão. Se o racionamento for necessário e não for decretado, aí sim o país viverá um apagão.

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