O Globo
Sair da negação e falar a verdade. Esse é o
primeiro passo para o país enfrentar a crise hídrica. Há 20 anos foi assim e
deu certo. O governo Bolsonaro permanece negando a gravidade da falta de água.
Fez uma MP para criar um comitê de gestão, que pode tudo menos decidir pelo
racionamento. Ontem foi anunciado aumento dos combustíveis, isso também afetará
a tarifa de energia. A inflação sobe, a popularidade despenca, a CPI revela
desmandos e corrupção e o governo tem medo de dizer a verdade sobre a crise
hídrica.
A crise de 2001 foi provocada pela falta de
planejamento, mas apesar de ser conhecido com “o apagão”, transformou-se num
“case” de sucesso de gestão. Um dos gestores daquela crise de 2001 foi David Zylbersztajn,
que na época era presidente da Agência Nacional do Petróleo. Ele compara:
– Tem agora uma repetição do erro do passado que foi entrar em negação, no início. Mas lá o sinal vermelho apareceu em maio. No dia primeiro de junho foi decretado o racionamento. Agora estamos em julho, o período seco está mais agudo e já perdemos mais de um mês em relação à ação tomada em 2001.
Ele acha que o risco de racionamento está
muito alto, muito além do aceitável. A grande vantagem é que em 2001 mais de
80% da energia consumida no Brasil era hidráulica. Agora, um pouco mais de 60%.
Foram desenvolvidas as energias eólica e solar, juntas têm mais de 10%, e
continuam crescendo. Além disso, foi instalado o parque térmico de energia
fóssil, e essas usinas, apesar de serem caras e sujas, foram colocadas no
sistema. Tudo isso atenuou o problema, mas ao mesmo tempo, aumentou o uso
competitivo da água.
As hidrelétricas mais velhas eram com
reservatórios, e as que foram construídas depois são a fio d’água. Nos anos 80
chegou a haver planejamento plurianual para cinco anos.
– Agora não tem nem para um. E nem tem como
ser diferente. Pegue Belo Monte, o lago que estava previsto iria inundar
aldeias indígenas e uma parte da cidade de Altamira. Belo Monte segurou a
produção de energia até agora, mas vai começar a cair drasticamente– disse
David.
A construção da usina produziu um grande
estrago ambiental mesmo sendo sem o reservatório previsto. E tem uma oscilação
na capacidade de produção enorme, que começa a declinar justamente agora no
período mais seco. Em agosto e setembro estará gerando em torno da metade da
sua capacidade. O que mudou fortemente nesse período de vinte anos foi a eólica
que chegou a segurar, em alguns dias, 100% da demanda do Nordeste. A escassez é
principalmente no Sudeste, onde está 60% a 70% da acumulação necessária do
Brasil todo.
– O sistema de transmissão está mais
parrudo hoje do que era em 2001, mas o problema é manter a transmissão nos
horários de pico. O governo tinha que conseguir deslocar o horário de pico, ou,
como se diz na pandemia, achatar a curva – explica David.
E como fazer isso? Como foi feito em 2001,
quando o governo abriu o jogo e falou claro. Sob o comando do então ministro
chefe da Casa Civil, Pedro Parente, o governo admitiu o tamanho do problema,
assumiu o seu erro, e passou a mobilizar a sociedade.
Um livro lançado recentemente conta o que
foi aquele período. “Curto-Circuito”, de Roberto Rockmann e Lucio Mattos.
– Uma coisa que fizemos naquela época foi
distinguir os consumidores. A bandeira vermelha não pode ser para todo mundo,
tem que ser para quem consome mais. Quem tem renda baixa, será muito
prejudicado. O pequeno negócio, também.
O que fez a diferença em 2001 foi um
ambiente de diálogo permanente com o país. Parente e todos os integrantes da
Câmara que geriu a crise falavam o tempo todo, com a imprensa, com todos os
setores envolvidos. Virou uma mobilização nacional. O consumo demorou uns sete
anos para voltar ao que era porque o país ficou mais eficiente.
– Ninguém tinha visto aquilo, reduzir a
carga de um país em 20% pelo lado da demanda. Essa conversa franca com a
sociedade ajudou. É como se a população dissesse, “vocês têm culpa, mas eu vou
ajudar”. O sinal econômico funcionou, quem reduzisse o consumo pagava menos –
conta David.
Agora, o governo prefere dizer que não vai ter racionamento. Só poderá evitá-lo se tomar as medidas certas. E nada será resolvido à moda militar, mas sim pela boa gestão. Se o racionamento for necessário e não for decretado, aí sim o país viverá um apagão.
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