O Globo
Uma hipótese para que Bolsonaro, diante da
denúncia dos irmãos Miranda, nada tenha feito: que a tradicional corrupção no
Ministério da Saúde, operada por esses barros e seus afilhados, tenha sido
encorpada pela adesão competitiva de militares ao esquema. Não seria só o
Centrão a amarrá-lo.
O governo é militar. Sim: abrigou mobília
testada como Roberto Dias, que Bolsonaro chegaria a indicar a cargo de direção
na Anvisa; só recuando ante a notícia de que assinara contrato suspeito para
compra de 10 milhões de kits-teste. Recuou da indicação, sem se acanhar, porém,
para mantê-lo como diretor do Departamento de Logística do ministério em que,
ora, ora, firmara o convênio acusado.
Manteve Dias, cheio de padrinhos e alcolumbres. Mas, sendo o governo militar, acrescentar-se-iam à dinâmica tipos como coronel Blanco, aquele que, ex-assessor de Dias até janeiro, abriu uma empresa de representação comercial de medicamentos três dias antes de se sentar à mesa, em 25 de fevereiro, com o ex-chefe e o policial Dominguetti, intermediário do intermediário, para presenciar conversa em que um diretor do Ministério da Saúde teria pedido propina ao atravessador que oferecia inacreditáveis 400 milhões de doses do imunizante AstraZeneca por meio de uma companhia, a Davati, de que procuração não tinha.
Assim se manifestou o CEO da Davati, Herman
Cárdenas, sobre o que ofertava: “No começo deste ano, fomos procurados pelo
nosso representante no Brasil para ajudar a localizar vacinas contra Covid-19.
Descobrimos um possível lote de vacinas sendo oferecido por um vendedor privado
no exterior”. Diga-se que a ponte entre a descobridora Davati e o governo,
antes de Dominguetti entrar na jogada, coubera a outro militar, o coronel
Criscuoli, amigo de Bolsonaro e próximo a Eduardo Pazuello e Elcio Franco.
Cárdenas também falou sobre Dominguetti, o
desconhecido que, no entanto, operava por sua empresa e que incluíra em e-mail
ao ministério: “Nos disseram para incluí-lo, mas ele não estava nos
representando. A Davati não tinha conhecimento de quem ele era, então
presumimos que era representante deles”.
Deles quem?
Nada disso — essa várzea — impediria que
Dominguetti fosse recebido, no dia seguinte, no Ministério da Saúde; nem que,
adiante, chegasse ao gabinete do secretário executivo, coronel Elcio Franco.
Para isto serve o rolo Dominguetti/Davati:
para mostrar como era fácil alcançar o centro decisório do ministério bastando
ter/ser um intermediário, independentemente de haver vacinas a comerciar. Este,
o atravessador, o elemento que dispararia o interesse do governo Bolsonaro —
não por imunizantes necessariamente, mas por contratos. Era o negócio — a
fatura, uma carta de intenções — que fazia a máquina girar. E tudo bem que
fosse irreal a oferta, se real fosse a intermediação. Eram necessárias a
Precisa, a Belcher, a Davati, até um Dominguetti. O agente que faltara à
Pfizer.
Voltamos, pois, ao caso Covaxin. O
caso-mãe.
Eis a cronologia, segundo a última versão
do Planalto. Em 20 de março, os Mirandas falaram a Bolsonaro sobre traficâncias
no Ministério da Saúde relativamente à aquisição dessa vacina. Terceirizando a
prevaricação, o presidente mandou Pazuello investigar. Era dia 22. (Não há
documento que formalize a ordem.) O general matou no peito. O chefe determinara
mesmo que apurasse; que, claro, o ministro da Saúde investigasse seu Ministério
da Saúde. Pazuello, por sua vez, terceirizando a terceirização, repassara a
demanda a seu braço direito, conforme explicaria, em 29 de junho, à PGR:
— Impende destacar que o secretário
executivo Elcio Franco foi responsável pela negociação, contratação e aquisição
de todas as vacinas pelo Ministério da Saúde. Por consectário lógico, o agente
público com maior expertise para apreciar eventual não conformidade contratual quanto
às vacinas era o secretário executivo.
Note-se que o “consectário lógico” de
Pazuello é a própria razão para que não fosse Elcio a investigar “eventual não
conformidade contratual”. Ou não será uma anomalia — a defesa do vício —
estabelecer que o “responsável pela negociação, contratação e aquisição de
todas as vacinas” seja o designado a apurar o produto (degenerado, segundo a
denúncia) de sua expertise?
Pazuello recebera a ordem — repita-se — em
22 de março. (O mesmo 22 de março em que Regina Célia Silva Oliveira, fiscal do
contrato em xeque, autorizaria a abertura do processo de importação da Covaxin,
mesmo ante pedido por pagamento antecipado — não previsto — a ser feito a
offshore não constante no tratado.) Pazuello seria exonerado no dia seguinte,
23, quando se formalizou demissão anunciada ainda no dia 15. Foi a 24 de março,
aliás, já fora da pasta, que associaria a sua queda à falta de “pixulé”; à
“crise com liderança política que nós temos hoje, que mandou uma relação pra
gente atender e nós não atendemos, e aí você está jurado de morte”. (O mesmo
dia 24 em que a Anvisa reclamava, ao ministério, de ser diretamente assediada
por e-mails da intermediária Precisa pressionando pelo aval à importação da
Covaxin.) A 26 de março, seria Elcio Franco o exonerado, mas não sem que
informasse — após três dias de averiguação — estar tudo bem com o contrato; o
mesmo suspenso ao fim de junho.
Estará tudo bem até ficar tudo ruim. A
crise é também militar. O risco de quando se manda Elcio Franco investigar
elcios-francos. Já não dá para culpar apenas “a liderança política que temos
hoje” nem cantar somente “se gritar pega Centrão...”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário