terça-feira, 28 de setembro de 2021

Felipe Salto* - O fim do teto de gastos

O Estado de S. Paulo

Discutir regras fiscais é essencial. Mudá-las para gastar bilhões em ano eleitoral é outra coisa

O teto de gastos está por um fio. A manobra para ampliar despesas sem economizar um centavo tem várias facetas. Todas ferem de morte essa regra fiscal. Nada entrará no lugar. Abre-se folga de dezenas de bilhões de reais em pleno ano eleitoral.

A regra do teto, instituída pela Emenda Constitucional n.º 95, de 2016, limita o crescimento das despesas. O IPCA acumulado em 12 meses até junho corrige o teto para o ano seguinte. Essa necessidade de controlar as despesas continua presente. Pode-se discutir o melhor desenho das regras, tema que perpassa diferentes correntes de economistas. Mas é preciso zelar pela responsabilidade fiscal.

A Instituição Fiscal Independente (IFI) tem alertado, desde 2019, para o risco de rompimento do teto, situação contemplada na Emenda 95. Os chamados gatilhos – medidas automáticas de ajuste fiscal – seriam acionados no caso de descumprimento do teto. Cristiane Coelho, Daniel Couri, Paulo Bijos, Pedro Nery e eu defendemos, na Folha (4 de setembro de 2020, Regras permitem romper teto de gastos sem abandonar ajuste fiscal), que a Emenda 95 autorizava romper o teto. O projeto de lei do Orçamento seria o lugar geométrico desse evento. O governo preferiu a tese da impossibilidade. Mais realista que o rei, propôs a PEC Emergencial.

A PEC morreu e foi ressuscitada, no fim de 2020, para ser promulgada como Emenda 109 em março de 2021. A nova regra criada para acionar as medidas de ajuste fiscal nada tem que ver com o limite original. Os gatilhos só poderão ser acionados se as despesas obrigatórias ultrapassarem 95% das despesas primárias totais (que não incluem juros). A IFI mostrou que é impossível superar esse porcentual sem cortar as despesas discricionárias (custeio da máquina, investimentos e outros) ao ponto de colapsar o Estado.

Para ter claro, os gatilhos preservariam a lógica do teto se estivessem em condição de acionamento. A regra do teto seria mantida. O plano B da própria Emenda 95 (gatilhos) seria ativado. Haveria tempo, sobretudo, para discutir uma reforma fiscal e orçamentária. Agora, o governo volta à carga com outra PEC – a dos Precatórios. Ameaça com o calote nos salários dos servidores e nas vacinas, caso não seja aprovada.

Os precatórios foram mal gerenciados. Faltou transparência. A Lei de Diretrizes Orçamentárias e o Balanço-geral da União deveriam apontar as projeções para as despesas de precatórios ano a ano. Esses gastos estão fixados em R$ 89,1 bilhões no Orçamento de 2022. Antes, previa-se R$ 57,8 bilhões. O excesso de R$ 31,3 bilhões poderia ser financiado com cortes em despesas discricionárias até o nível de R$ 104 bilhões. Baixo, mas compatível com o funcionamento da máquina pública, como mostra artigo assinado por mim e pelos outros diretores da IFI na edição de sábado do Estado.

Com inflação em torno de 8,5%, em 2021, as despesas do ano que vem cresceriam, mas haveria folga de R$ 17 bilhões no teto. Ela se somaria ao corte das discricionárias para saldar a fatura dos precatórios. Sobrariam R$ 14 bilhões para aumentar o Bolsa Família, de cerca de R$ 190 para R$ 250 ao mês, zerando a fila de 1,6 milhão de famílias.

A inflação poderá ser maior, mas a correção de um erro de interpretação da Emenda 95 ajudaria com outros R$ 16 bilhões. Os precatórios do Fundef (antecessor do Fundeb) não têm de estar sob o teto. Se os gastos do Fundeb/fundef não estão, seus precatórios também não deveriam estar, como argumentei neste espaço em 31 de agosto. Mas o desejo é abrir folga bem maior em 2022, de pelo menos R$ 40 bilhões.

A retirada de todos os precatórios da base do teto (2016), com recálculo para a frente, abriria R$ 48,6 bilhões no teto do ano que vem, mesmo valor decorrente da proposta de limitar o pagamento anual a um nível máximo, empurrando o resto. Se o Bolsa Família ou o Auxílio Brasil, seu substituto, for ampliado para R$ 300 ao mês, com 17 milhões de famílias beneficiadas, o custo seria de R$ 27 bilhões. Os outros R$ 21,6 bilhões seriam gastos em quê? Emendas de relator-geral do Orçamento.

Esse instituto é inconstitucional, segundo Heleno Torres, professor de Direito Financeiro do Largo São Francisco. Em 2021, são R$ 18,5 bilhões em emendas de relatorgeral. Para o ano que vem, o pagamento integral dos precatórios, respeitado o teto, não deixaria espaço para isso. Eis o nó.

Há, ainda, um elemento “novo”. Formadores de opinião de relevo passaram a defender a retirada dos precatórios do teto, com medo do parcelamento ou da postergação. Alguns deles, sim, defendem que a medida seria o caminho para preservar a regra. Discordo, mas respeito. Mexer em regra fiscal para facilitar o seu cumprimento é contabilidade criativa, ainda que introjetada na Constituição. Quem garante que outras despesas não seriam retiradas? Ninguém.

Discutir as regras fiscais é essencial. Mudá-las para gastar dezenas de bilhões em ano eleitoral é outra coisa. A Emenda 95 já reza a última oração para, então, pender e seguir no cortejo fúnebre. É o fim do teto de gastos.

*Diretor-executivo e responsável pela implantação da IFI

 

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