EDITORIAIS
Mil dias a menos
O Estado de S. Paulo
Este é um dos poucos motivos para celebrar o milésimo dia de Jair Bolsonaro no Planalto, o mais completo e desastroso desgoverno do Brasil independente
Completados mil dias, são mil dias a menos
com Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto. Este é um dos poucos motivos para
celebrar o milésimo dia do mais completo e mais desastroso desgoverno do Brasil
independente. Haver sobrevivido também pode ser uma razão para festejar, se for
possível conter, por algum tempo, a indignação e a dor pelos milhares de mortes
atribuíveis ao negacionismo, à irresponsabilidade e a uma incompetência fora
dos padrões conhecidos. Passados quase três quartos do mandato, restam, no entanto,
os perigos associados à ambição de um presidente empenhado em continuar no
poder – se possível, por meio de uma reeleição.
Não há por que esperar uma transfiguração
de Bolsonaro, em sua luta para sobreviver politicamente e adiar, ou talvez
evitar, as consequências legais de seus desmandos e omissões. Enquanto estiver
na Presidência, ele tentará preservar o custoso apoio do Centrão. Além disso,
continuará forçando a equipe econômica a encontrar, no Orçamento, recursos para
gastos eleitoreiros. Não há por que esperar, também, um desempenho, em qualquer
setor – educação, crescimento econômico, saúde, emprego e bem-estar –, melhor
do que aquele registrado até agora.
O primeiro grande feito de Bolsonaro foi interromper a recuperação econômica iniciada em 2017, depois da recessão de 2015-2016. A economia cresceu apenas 1,4% em 2019, menos que no ano anterior, e já estava mais fraca no começo de 2020, antes da pandemia. O recuo de 4,1% naquele ano foi menor que o de várias economias desenvolvidas e emergentes, mas o País entrou em 2021 com desemprego de 14,7%, muito acima dos padrões dos países de renda média. Pior que isso, milhões de pessoas estavam desassistidas e dependentes de campanhas de solidariedade para comer.
Ameaças golpistas foram o complemento do
cenário econômico de insegurança, desemprego e miséria crescente. Logo depois
da invasão do Congresso americano por uma turba incitada pelo presidente Trump,
Bolsonaro ameaçou algo semelhante, no Brasil, se a eleição do próximo ano for
feita com voto eletrônico. Meses depois, um projeto de restabelecimento do voto
impresso foi derrubado no Parlamento, mas o presidente continuou insistindo no
assunto.
Conflitos com os Poderes Legislativo e
Judiciário marcaram toda a gestão bolsonariana, e neste ano ele se concentrou
em ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal Superior Eleitoral
(TSE). Ataques às duas Cortes foram temas das manifestações golpistas de 7 de
setembro, lideradas pelo presidente em Brasília e em São Paulo. Essas
manifestações foram por ele descritas como democráticas, em seu vergonhoso
discurso na abertura da assembleia anual das Nações Unidas, em Nova York.
Rejeição das instituições e ameaças de
golpe, mais ou menos ostensivas segundo as circunstâncias, foram acompanhadas,
em alguns dos momentos mais feios, de elogios à ditadura militar e a um notório
torturador daquele período, o coronel Brilhante Ustra, chamado de herói por
Bolsonaro. O mesmo qualificativo foi atribuído a um conhecido miliciano morto
pela polícia na Bahia.
Elogios a um torturador e a um miliciano
combinam com a política de facilitação de acesso às armas. Pessoas sérias podem
apoiar essa política, mas seus principais beneficiários são obviamente os
criminosos e os bolsonaristas dispostos a formar milícias de apoio a um líder
antidemocrático.
Alimentada pela incompetência e pela
irresponsabilidade, a inflação acumulada em 12 meses bateu em 10%, atormentando
famílias já acuadas pelo desemprego e pela perda de renda. As projeções de
crescimento econômico em 2022 estão abaixo de 2% e algumas instituições do
mercado já anunciaram estimativas próximas de 0,5%. O desastre na saúde e o
fracasso econômico foram complementados, nesses mil dias, com devastação
ambiental, desmonte do Ministério da Educação e comprometimento da imagem do
País, manchada por um extremista percebido em todo o mundo como caricatura
patética do já patético Donald Trump. Cada um desses mil dias é para ser
lamentado.
O Senado e a proteção das eleições
O Estado de S. Paulo
Entre os absurdos gerados na Câmara, tem até proposta de censura sobre pesquisas eleitorais
Sob a presidência de Arthur Lira (PP-AL), a
Câmara tem produzido propostas legislativas que são verdadeiros retrocessos em
matéria eleitoral. Felizmente, o Congresso é composto por duas Casas, e o
Senado tem conseguido limitar os danos. Na quarta-feira passada, os senadores
impediram a volta das coligações partidárias nas eleições proporcionais
(deputado federal, deputado estadual e vereador). É preciso advertir, no
entanto, que o Senado tem ainda muito a fazer na defesa do sistema eleitoral e
dos direitos políticos. Entre os absurdos gerados na Câmara, tem até proposta
de censura a pesquisas eleitorais.
São dois os principais projetos sobre
legislação eleitoral: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 28/2021 e o
projeto de um novo Código Eleitoral. No dia 22 de setembro, o plenário do
Senado concluiu a votação da PEC 28/2021, mas sem a volta das coligações. Os
senadores aprovaram a redação apresentada pela senadora Simone Tebet (MDB-MS),
que, entre outros itens, estabeleceu novos critérios para a distribuição de
recursos públicos entre as legendas e incluiu na Constituição a regra da
fidelidade partidária. Além disso, a partir de 2026, a posse do presidente da
República será no dia 5 de janeiro e a dos governadores, no dia 6. Como os
senadores aprovaram uma parte da PEC original, o texto não voltará à Câmara.
Com a nova redação da PEC 28/2021, o Senado
impediu um significativo retrocesso. Autorizadas até 2017, as coligações
partidárias nas eleições proporcionais faziam com que o voto em determinado
candidato pudesse eleger outro candidato, de outro partido, simplesmente em
razão do convênio entre as legendas. Nesse sistema, o eleitor não tinha
controle sobre os efeitos do seu voto, o que é profundamente problemático para
a representação política.
Além disso, as coligações serviam para
esconder a falta de representatividade de muitos partidos nanicos. Apesar de
receberem pouquíssimos votos, candidatos dessas legendas usufruíam, em razão da
coligação, dos votos de outros candidatos, de outras legendas, no cálculo do
preenchimento das cadeiras legislativas. Com isso, as coligações ajudavam a
viabilizar partidos totalmente inviáveis, sem nenhuma representatividade, o que
favorecia a disfuncional e perniciosa fragmentação partidária.
Agora, o Senado recebeu a proposta relativa
ao novo Código Eleitoral, com mais de 900 artigos, aprovada na Câmara. De
pronto, chama a atenção a precipitação na tramitação de um projeto de tamanha
envergadura. Em tempos de pandemia, com outras prioridades e, principalmente,
com as limitações decorrentes das regras sanitárias, não há condições mínimas
de avaliação desse novo marco legal.
A confirmar a precipitação, o projeto de
novo Código Eleitoral contém graves e inconstitucionais aberrações. Prevê-se,
por exemplo, a proibição da divulgação das pesquisas de intenção de voto na
véspera e no dia das eleições. A proibição de cobertura jornalística sobre
algum aspecto do pleito é violação das liberdades individuais e dos direitos
políticos.
Além de configurar censura prévia e de
tratar o cidadão como incapaz – o Estado assumiria o papel de interventor na
autonomia individual, regulando o que cada um deveria utilizar na decisão sobre
o seu voto –, a medida seria forte incentivo à desinformação e à manipulação.
Com os veículos de comunicação impedidos de divulgar as pesquisas de intenção
de voto, feitas com metodologia reconhecida, não haveria contraponto a
pesquisas falsas ou distorcidas que certamente vão circular nas redes sociais e
grupos de WhatsApp, confundindo os eleitores.
Além disso, o projeto do novo Código
Eleitoral abranda a Lei da Ficha Limpa, diminui a transparência do uso do
dinheiro público por partidos, exclui restrições relativas ao emprego desses
recursos e diminui a punição de condutas que ferem a lei eleitoral. Diante
desse perigoso quadro, cabe ao Senado ser muito cauteloso. É preciso submeter a
proposta de um novo Código Eleitoral a uma rigorosa e pausada análise, que
exclua os retrocessos e as inconstitucionalidades. Mudar para piorar é um
atentado contra o eleitor.
O FMI e o Brasil emperrado
O Estado de S. Paulo
Relatório começa positivo, mas aponta baixo crescimento nos próximos anos
Crescimento medíocre, na faixa de 2% ao ano, é a previsão do
Fundo Monetário Internacional (FMI) para o Brasil nos próximos cinco anos. Pouco
dinamismo, dívida pública elevada e baixo investimento produtivo chamam a
atenção no cenário dos números, embora o relatório recém-divulgado sobre a
economia brasileira comece com palavras positivas e tom otimista. “O desempenho
econômico tem sido melhor que o esperado”, anuncia o documento logo no início.
O Produto Interno Bruto (PIB), informa-se depois, voltou ao nível pré-pandemia
no primeiro trimestre de 2021, “em parte graças à vigorosa resposta política
das autoridades”, e o impulso continua favorável, sustentado pelo comércio
internacional, com forte evolução dos termos de intercâmbio, e pelo crédito
robusto ao setor privado.
Mantido o impulso, a economia deve crescer
5,3% neste ano, de acordo com o relatório, produzido a partir de uma consulta
anual entre técnicos do Fundo e fontes brasileiras, principalmente oficiais.
Segundo o texto, o consumo será sustentado pela melhora do mercado de trabalho
e pelos altos níveis até agora observados de poupança familiar. Estoques baixos
devem ser recompostos, a melhora dos preços das commodities sustentará o
investimento e a inflação cairá firmemente dos picos recentes até o centro da
meta no fim de 2022. Tudo isso estará associado, naturalmente, ao avanço da
vacinação.
Além disso, a dívida pública, depois de ter
batido em 99% do PIB no ano passado, deve cair para 92% neste ano e permanecer
em torno desse ponto no médio prazo. As incertezas são “excepcionalmente
altas”, mas os riscos para o crescimento são vistos como amplamente
equilibrados, acrescentam os autores.
Mas é difícil, mesmo com boa vontade e com
esforço diplomático, normal nos documentos do FMI, sustentar por muito tempo
esse otimismo, quando se trata de um país com baixo potencial produtivo. O
otimismo seria ainda menor, se a equipe do Fundo considerasse a competência
administrativa, o grau de organização do Executivo e, acima de tudo, as
características de seu líder. Apesar disso, o relatório atribui seriedade e
capacidade transformadora a uma agenda de reformas orientada, segundo o texto,
para elevar a produtividade, o crescimento potencial, os padrões de vida e a
governança.
O quadro ganha realismo quando a agenda se
traduz em termos de prioridades e desafios, palavras mais adequadas para
descrever as mudanças indispensáveis e as ações necessárias para
concretizá-las. Reformas estruturais estão longe de ser garantidas e o combate
à inflação pode implicar um forte aumento de juros (de fato, já iniciado). O
controle da dívida pública dependerá do respeito ao teto de gastos e de maior
capacidade administrativa.
Os autores do texto provavelmente ficariam
menos animados se avaliassem mais de perto as demandas do Centrão e as
preocupações eleitorais do presidente da República. Ainda faltaria analisar as
condições de tramitação dos projetos, com distorções de finalidades,
preservação de privilégios e farta introdução de jabutis e jabuticabas, tudo
isso diante da inércia e da complacência da equipe econômica.
A realidade familiar aos brasileiros fica
mais visível, enfim, quando se abandona o texto e se passa aos números do
relatório. Apesar do tom otimista de alguns parágrafos, não há sinais
importantes, nas tabelas, de expectativas de mudanças no cenário geral. Pelas
projeções do FMI, a economia brasileira, depois de avançar 5,3% em 2021,
crescerá 1,9% no próximo ano, 2% em 2023 e 2,1% anuais de 2024 a 2026. Esse tem
sido o padrão das projeções, desde os tempos da presidente Dilma Rousseff.
O investimento em máquinas, equipamentos e obras deve sair de um mínimo de 16,5% do PIB neste ano para um máximo de 18,8% em 2026, superando 18% só a partir de 2023. Em outros emergentes, a taxa supera 24% do PIB e, com frequência, 30%. Sem surpresa, crescem mais que o Brasil. Surpresa, mesmo, haverá se a próxima missão do FMI, num ano de eleições, encontrar um quadro mais promissor e de mais seriedade.
Incerteza teutônica
Folha de S. Paulo
Derrota de partido de Merkel dá
visibilidade a pontos controversos de seu legado
Marcado pela aversão ao risco, o longo
reinado de Angela Merkel à frente do governo alemão chega ao fim sob
incertezas.
A
maior economia europeia foi às urnas no domingo (26) e apurou o pior
desempenho histórico do partido da chanceler (primeira-ministra, na
terminologia alemã e austríaca), a união de siglas democratas cristãs há 16
anos no poder.
A CDU-CSU teve 24,1% dos votos, ante 25,7%
dos sociais-democratas (SPD), com quem coabitavam na chamada Grande Coalizão.
A depender do vitorioso
Olaf Scholz (SPD),
o novo governo terá os verdes (que somam 14,8% do eleitorado) e os liberais do
FDP (11,5%). Isso garantiria 416 cadeiras no Parlamento, acima das 368
necessárias para uma maioria.
Haverá negociações, contudo, e mesmo um
improvável acordo com a CDU-CSU não está totalmente descartado. Todo governo no
pós-guerra alemão foi formado por coalizões, mas nunca houve eleição tão
pulverizada —sendo a boa notícia a perda de espaço de radicais de direita e de
esquerda.
É uma despedida algo inglória para Merkel,
uma das únicas líderes mundiais digna do epíteto de estadista, como o manejo da
pandemia comprova. Seu vasto prestígio, em particular no exterior, ofusca a
série de problemas que ela deixa a seu sucessor.
Sua elogiada tendência à acomodação ajudou
a Alemanha a passar por crises severas, como a econômica de 2008 e a sanitária
atual.
Entretanto também a impediu de fazer avançar
agendas importantes, como a reforma previdenciária —lacuna compreensível quando
mais de 20% dos eleitores são idosos, mas que irá cobrar seu preço.
A Alemanha, a despeito da pujança de sua
poderosa indústria, tem indicadores piores do que os de vizinhos em quesitos
como competitividade e inovação. A má qualidade das redes de internet no país
constitui um monumento muito tangível a essa contradição.
Mesmo com um Partido Verde dos mais
influentes no mundo e uma agenda ambiental estabelecida, tem os piores índices
de emissão de carbono da região.
A rigidez com que Merkel sempre lidou com
temas orçamentários, algo obviamente positivo, muitas vezes foi vista como
excessiva. A forma com que os países mais pobres da União Europeia foram
tratados colocou Berlim na fronteira da insensibilidade social.
Ainda no campo externo, a Alemanha perdeu
espaço para a França devido à pouca disposição para enfrentar temas como o
status militar europeu em meio à Guerra Fria 2.0 travada entre China e EUA.
De forma mais controversa, em nome da
segurança alemã Merkel consolidou o domínio do Kremlin sobre o mercado
energético europeu ao finalizar dois gasodutos ligando seu país à Rússia.
Por fim, a atomização partidária não
facilitará a abordagem decisiva dessas questões. Apesar de suas inegáveis
qualidades, Merkel não legou um quadro político estável à semelhança de seus
anos no poder.
Alívio parcial
Folha de S. Paulo
Delta não reverteu queda das mortes por
Covid, mas números ainda exigem alerta
Como
mostrou o Datafolha, 71% dos brasileiros acreditam que a pandemia do
coronavírus está parcialmente controlada no país, e 9% veem controle total. A
cautela da maioria é plenamente justificável, mas não deixa de ser motivo de
alívio notar que a disseminação da variante delta não tem revertido a tendência
de queda das mortes.
Nunca se poderá esquecer que o Brasil viveu
uma catástrofe, por efeito direto da negligência do governo Jair Bolsonaro. Em
abril, período mais letal da pandemia, atingiu-se média sinistra de mais de
3.000 mortos ao dia por Covid-19.
Nas duas últimas semanas, a média ficou em
ainda muito elevados 500 óbitos diários. Nesse percurso, a identificação da
variante delta em solo brasileiro levou a projeções de cenários alarmantes. A
melhora gradual, no entanto, manteve-se.
Mais transmissível, a variante delta é
resultado de alterações no material genético do vírus —as chamadas mutações.
Isso ocorre quando o patógeno está circulando demais em uma população. Quanto
mais oportunidades ele tem de se espalhar, mais se replica e está sujeito a
sofrer mudanças.
No hemisfério norte, sabe-se que a delta
causou aumento de casos (incluindo leves) e de mortes por Covid-19. Nos Estados
Unidos, a variante levou o governo a rever flexibilizações sanitárias. Em
julho, o uso de máscaras em ambientes fechados voltou a ser obrigatório.
Em Israel, houve uma ascensão gradual de
óbitos a partir de meados de agosto. Era a quarta onda da pandemia naquele
país.
Por aqui, há ressalvas a fazer. Os dados
brasileiros sobre o novo coronavírus são precários e, sem investimentos e
acompanhamento do Ministério da Saúde, a chamada vigilância genômica é ainda
pior.
Não se sabe exatamente como a delta está se
espalhando no país; há vasta evidência, isso sim, de subnotificação de casos da
doença. Como a Folha noticiou, a quantidade de mortes por causas mal definidas
saltou 30% na pandemia.
Com o arrefecimento relativo da Covid-19,
avança-se na retomada de atividades, o que é um imperativo social e econômico.
Os números e a experiência, entretanto, não permitem que se baixe a guarda.
Mil dias de Bolsonaro no poder, quase nada
a comemorar
Valor Econômico
Projeto dava possibilidade de prorrogar por
mais 30 anos os contratos em vigor
Mil dias de governo de um presidente como
Jair Bolsonaro parecem uma eternidade. Em contraste, foi rápida a queda do véu
eleitoral do candidato da “nova política”, inimigo da corrupção e liberal
empedernido e a volta à realidade de um político sedento de poder, autoritário
e corporativista da velha guarda, envolto em suspeitas de “rachadinhas” com
seus filhos e ex-esposa. Bem no início de seu governo, Bolsonaro anteviu sua
obra: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas
para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa”, disse. “Para
depois começarmos a fazer” (17-3-2019). O capítulo da destruição segue avançado
e inconcluso.
O presidente abriu seu mandato eliminando o
Ministério da Cultura, hoje apêndice do Turismo, e seguiu em frente rumo à
aniquilação da educação. As escolhas pessoais dos ministros da área seriam
folclóricas, se não fossem letais. O primeiro deles, Ricardo Vélez Rodríguez,
durou três meses, tempo bastante para mostrar sua bizarra incapacidade para o
cargo, sabujice e, claro, falta de educação. Um mês após assumir ordenou aos
diretores de escolas que filmassem os alunos cantando o Hino Nacional e citando
o lema da campanha eleitoral de Bolsonaro. Será lembrado pela entrevista à
revista Veja, revelando ternura pelos cidadãos do país. “O brasileiro viajando
é um canibal”, disse. “Rouba coisas do hotel (...), acha que sai de casa e pode
carregar tudo”. A associação entre roubo e canibalismo é pouco frequente.
Seu sucessor, o indescritível Abraham
Weintraub, inapto para o trabalho e hoje em uma sinecura bem-remunerada no
Banco Mundial, achou que sua tarefa era agredir supostos inimigos do governo.
“Botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF”, disse, e saiu às
pressas do país. O atual ministro, Milton Ribeiro, assumiu em plena pandemia e
só deixou traços de sua presença quando resolveu dar palpites, como o de que as
universidades, por meio do pensamento existencialista, incentivam sexo “sem
limites”. Ribeiro esteve ausente o tempo todo e nenhuma grave questão do
ensino, entre muitas - ensino à distância, reabertura das escolas, etc -
mereceu sua atenção.
Da educação, uma unanimidade, depende o
futuro do país, e o país, com Bolsonaro, retrocedeu. O presente, que continua
sendo a pandemia e quase 600 mil cadáveres, foi igualmente desprezado.
Bolsonaro trocou ministros no auge da mortandade e nomeou um neófito, o general
Eduardo Pazuello, um desastre anunciado. O governo recusou-se a comprar
vacinas, enquanto uma rede de aproveitadores, com conexões em um ministério
repleto de militares, tentou extorquir dinheiro com esquemas malandros de
obtenção de vacinas, como revelou a CPI. Bolsonaro até hoje diz que o kit covid
é eficaz, ao contrário das vacinas, das quais desconfia, e que houve
supernotificação das mortes por covid-19 nos hospitais.
Na economia, após uma reforma da previdência
que já vinha andando do governo anterior, o liberalismo fake do presidente fez
estrago. O ministro Paulo Guedes tentou com sua PEC Emergencial (5 de novembro
de 2019) fazer três reformas em uma - só criou confusão sobre as prioridades e
a PEC foi tosqueada pelo Congresso. O ministro tornou-se cabo eleitoral de
Bolsonaro, e a economia segue o ritmo de cágado herdado, sem que suas ações
tenham feito diferença relevante.
Bolsonaro mal completou três semanas no
cargo até que viessem à tona depósitos de R$ 24 mil na conta da primeira dama,
feitos pelo amigo miliciano Fabrício Queiroz, envolvido em processo de
‘rachadinhas’ que tem como protagonista Flavio Bolsonaro - investigação
semelhante é feito sobre o vereador Carlos Bolsonaro. Ao mesmo tempo, descobriu-se
o laranjal do PSL, com suspeitas sobre o ministro do Turismo, Marcelo Antônio.
Em vez de afastá-lo, Bolsonaro ejetou do governo o ministro da Justiça, Sergio
Moro, que impediu Lula de concorrer contra Bolsonaro.
Após ataques sem parar contra a democracia,
culminando com as manifestações de 7 de setembro, Bolsonaro tem à frente
popularidade em declínio, inflação em alta, perspectiva de crescimento medíocre
e uma crise hídrica grave. Abraçado às forças do atraso no Congresso, o
presidente, que prometeu acabar com a reeleição, só pensa nisso e afirmou: “Eu
sempre fui do Centrão”. Sua piromania na Amazônia e em outros biomas impede o
Brasil de se engajar em outra agenda do futuro.
Em retrospecto há poucas coisas a comemorar e uma é certa: Bolsonaro foi impedido de fazer quase tudo o que pretendia. Mas não desistiu ainda.
Lei de Improbidade Administrativa precisa
ser alterada pelo Senado
O Globo
O Senado deu nas últimas semanas uma prova
decisiva de estar à altura de seu papel de Câmara Alta na democracia
brasileira. Soterrou a “contrarreforma” eleitoral engendrada pela Câmara,
demonstrando ser capaz de equilibrar os exageros cometidos pelos deputados em
causa própria. Fez isso em dois momentos.
Primeiro, a relatora Simone Tebet (MDB-MS)
excluiu, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que mudou a lei eleitoral,
a volta das coligações nas eleições proporcionais. Era uma manobra marota com
que partidos fisiológicos tentavam aumentar as chances de sobrevivência nas
eleições de 2022, as primeiras em que passarão a valer as regras para depurar o
fragmentado sistema partidário brasileiro.
Segundo, o presidente Rodrigo Pacheco
(DEM-MG) tomou a atitude sensata diante do Novo Código Eleitoral de 898
artigos, aprovado às pressas na Câmara. Constatou ser impossível votar lei tão
abrangente no prazo necessário para que valesse já no ano que vem e decidiu dar
tempo aos debates. Em consequência, o Brasil terá em 2022 eleições para o
Parlamento sob a vigência de legislação mais razoável.
Por tudo isso, chama a atenção o tratamento
dado à nova Lei de Improbidade Administrativa, cuja votação está prevista para
esta semana. O relator do projeto recebido da Câmara, Weverton Rocha (PDT-MA),
é réu em ações por peculato e... improbidade. Escolhido no dia 13, apresentou o
relatório de 33 páginas em 24 horas sem acatar nem uma só das 42 emendas
apresentadas (para evitar que o projeto tivesse de voltar a ser apreciado pelos
deputados). É evidente a pressa para aprovar legislação mais branda com os corruptos.
Importante ressaltar que a Lei de
Improbidade, em vigor desde 1992, precisa mesmo de mudanças. Anterior à Lei
Anticorrupção e à Lei das Organizações Criminosas (ambas de 2013), foi durante
muito tempo o único instrumento de que o país dispunha para combater a
corrupção. Mas sua aplicação acabou desvirtuada. Ela tem funcionado para inibir
bons profissionais de tomar parte na gestão pública, onde se veem sob ameaça
constante de processos e evitam correr riscos diante de questões urgentes. Boa
parte do atraso na produção do ingrediente ativo das vacinas pela Fiocruz se
deve a temores inspirados pela Lei de Improbidade.
É correta, portanto, a principal mudança
sugerida na nova lei: exigir comprovação de dolo para condenação. Do contrário,
ela serviria para punir meros erros administrativos ou má gestão — que devem
ser punidos, mas nas urnas, não nos tribunais. Só que o texto também traz
mudanças cujo objetivo implícito é facilitar a vida dos corruptos.
A principal é a falha grosseira de não
haver pena mínima para os crimes cometidos, além da redução nos prazos de
prescrição e de períodos curtos para inquéritos apurarem desvios. O Senado tem
a obrigação de corrigir esses e outros defeitos para que a nova lei iniba a
corrupção sem afastar bons profissionais do serviço público. É preciso que,
diante dela, o Senado saiba demonstrar a mesma sensatez que teve diante da
contrarreforma eleitoral.
Não há mais tempo a perder na corrida pelo
5G
O Globo
Em meio à paralisia e à incompetência que campeiam no governo Bolsonaro, é
auspiciosa a definição do dia 4 de novembro como data para o leilão das
frequências destinadas à telefonia celular de quinta geração, o 5G. Depois de
15 meses de debates, o conselho diretor da Agência Nacional de Telecomunicações
(Anatel) aprovou o edital na última sexta-feira. O recebimento dos documentos
das teles interessadas começará no final de outubro. Não há mais tempo a
perder.
Caso o cronograma seja cumprido, a
tecnologia deverá ser oferecida nas capitais e em Brasília até o final de julho
de 2022. Cidades menores também serão atendidas, num prazo mais longo. A
inclusão desses municípios é um dos pontos positivos do que foi aprovado, por
determinar a universalização de uma nova tecnologia que promete revolucionar
várias esferas da vida e da economia.
O modelo de leilão adotado no Brasil ajuda
a atingir esse importante objetivo. Em vez de dar ênfase à arrecadação para
encher os cofres do governo, o leilão do 5G prevê que a maior parte dos
recursos levantados será investida em infraestrutura de comunicação e na
conectividade de áreas distantes dos grandes centros. Estima-se que a disputa
entre as teles movimentará R$ 50 bilhões, pouco mais de R$ 10 bilhões
destinados ao pagamento das outorgas.
Depois de muita negociação, o governo
conseguiu acomodar interesses divergentes. As teles, preocupadas com os custos
de implantação da nova tecnologia, fizeram pressão para que a fornecedora
chinesa Huawei, já presente na rede brasileira e com produtos mais baratos, não
fosse banida, como queriam o governo americano e as alas mais radicais do
bolsonarismo. No edital, a Huawei não sofreu restrição.
Num aceno ao pedido dos Estados Unidos, o
governo fez questão de incluir no edital a construção de uma rede privativa de
comunicação para a administração pública federal. Antes de as obras começarem,
é esperado que uma regra desqualifique a Huawei. A esta altura, isso é um mero
detalhe. Tendo em vista que terão acesso ao mercado gigantesco das teles,
qualquer reclamação dos chineses será meramente protocolar.
O Tribunal de Contas da União (TCU), ao
analisar o texto, também fez uma ótima sugestão, mais tarde aprovada: cobertura
de internet em todas as escolas de ensino básico até 2024 — parte com 5G, parte
com uma versão menos potente ou 4G.
São incomensuráveis os benefícios de uma
rede 5G. Não se trata apenas do aumento estonteante na velocidade de conexão. A
nova tecnologia promete uma revolução na economia comparável ao advento da
internet nos anos 1990. A comunicação entre máquinas se tornará mais ágil; na
indústria e no agronegócio, as empresas terão como coletar mais dados,
melhorando a produtividade; a medicina remota se tornará ubíqua; temas hoje
esotéricos como “internet das coisas” ou “inteligência artificial” ganharão
sentido mais concreto no dia a dia.
Claro que tudo isso não acontecerá de uma
hora para outra. Dependerá de decisões tomadas pelas empresas nos próximos
anos. As oportunidades demandarão investimentos e desenvolvimento de novas
tecnologias. Mas que ninguém duvide: a partir do leilão, elas estarão abertas.
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