terça-feira, 28 de setembro de 2021

Joel Pinheiro da Fonseca - Um país intoxicado

Folha de S. Paulo

É tarde para recuperar vidas que se perderam, mas não para encerrar a carreira de Bolsonaro

 “A cloroquina curou meu tio.” Mereceria um Nobel da Paz quem conseguisse persuadir o grande público de que esse tipo de evidência anedótica não serve para nada. Via de regra, contudo, qualquer cura mágica, medicina alternativa ou crença infundada permanece um fenômeno marginal, que pouco interfere na saúde pública.

Com a cloroquina foi diferente. O furor na defesa desse remédio tomou o país. Ficou inclusive difícil para instituições médicas sérias testarem seus efeitos, pois os pacientes passaram a tomar por conta própria. Houve plano de saúde distribuindo o kit de presente para os associados. O médico não receitou? O paciente procurava outro médico até que algum receitasse, ou simplesmente tomava sem receita.

Vi amigos meus dizendo que não apoiar a cloroquina era falha moral. Houve quem fizesse “caridade” distribuindo kits para os pobres. O país enlouqueceu na cloroquina (e mesmo assim está no top 10 mundial em mortes por milhão de habitantes; ou seja, realmente não funciona).

Por que se criou um movimento, uma torcida organizada, uma militância, ao redor deste remédio? A resposta, como a de tantas outras tragédias recentes, é Bolsonaro. O presidente da República virou garoto-propaganda do remédio. Gastou milhões de reais para produzir, comprar, distribuir e promover uma cura falsa. E não foi a primeira vez que se fez de charlatão —enquanto deputado, aprovou projeto para incentivar a “pílula do câncer” (que, como você pode imaginar, não funciona).

Ao empurrar o remédio goela abaixo da população, Bolsonaro levou milhões a não se protegerem devidamente. Afinal, era só uma gripezinha e bastava tomar cloroquina para se curar. Para os que desenvolveram sintomas, os efeitos colaterais do kit Covid podem ter agravado o quadro. Sua política matou gente.

Isso tudo já sabíamos. O que não era ainda plenamente conhecido —e só o foi graças à CPI— é o grau de descalabro ético que foi tolerado e até incentivado dentro de instituições que, supostamente, trabalhavam pela vida.

Se o que foi relatado sobre a Prevent Senior se confirmar, então temos uma rede de hospitais cujos pacientes sequer sabiam os remédios que estavam tomando e faziam parte de estudos sem consentimento. Médicos eram obrigados a receitar o kit. Mortes foram omitidas. Uma instituição que frauda um estudo de cloroquina está mais preocupada em bajular Bolsonaro do que em salvar vidas.

Em meio a esse show de horrores, o CFM (Conselho Federal de Medicina) poderia ter dado um basta, mas preferiu ficar bem com o presidente. Pela diretriz do CFM, que data de abril de 2020, o médico pode prescrever cloroquina para tratar de Covid. Isso fazia sentido no início da pandemia.

Na ausência de um tratamento conhecido, permite-se que o médico prescreva tratamentos que têm alguma chance de funcionar. Mas o tempo passou, e evidências conclusivas da ineficácia da cloroquina surgiram. Mesmo assim o parecer não mudou. Médicos continuaram receitando e pacientes exigindo.

A política de Bolsonaro matou gente. E seu estilo personalista, autoritário, de tratar as instituições —as que o bajulam são amigas e merecem benefícios, as que não o servem são inimigas e devem ser atacadas— incentivou outros a fazê-lo. Prevent, CFM, Unimed, Hapvida, Manaus, Itajaí. A saúde foi negligenciada em nome da fé cega no Mito. É tarde para recuperar as vidas que se perderam, mas não para encerrar precocemente a carreira do charlatão que nos governa e escolher com mais responsabilidade em 2022.

 

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