segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Miguel de Almeida - Erro médico

O Globo

Na noite em que o cabo Queiroga baixou à enfermaria com Covid-19, uma frase de Honoré de Balzac por certo definiria o personagem bozofrênico:

— Quanto mais infame é a sua vida, mais o homem se importa com ela; ela se torna então um protesto, uma vingança de todos os instantes.

Queiroga (ele lembra o Sargento Garcia, do Zorro, o zonzo da história) acabara de ouvir na ONU o discurso histórico de seu capataz e, mesmo sendo um sabujo, notório escova-botas, deve ter ficado pasmado com aquela escandalosa ausência de coordenação verbal, mental e higiênica:

— Eu mesmo foi (sic) um desses que fez (sic) o tratamento inicial — leu o Bozo no teleprompter.

Ao que parece, tal trecho de defesa do tratamento precoce acabou inserido no discurso por seu filho, alcunhado Eduardo Bananinha, em aceno à base bozonazista (estimada em 11% do eleitorado). Evidencia-se aí um padrão de comando bastante rígido, qual seja, o Bozo só se cerca de gente mentalmente inferior ao seu nível.

De volta de sua pizza na calçada, talvez com sintomas, o aduloso Queiroga pôde assistir no hotel à entrevista de Eduardo Bananinha ao apresentador trumpista Tucker Carlson, quando acusou Bill de Blasio de ser “marxista”. E disse mais: o prefeito de Nova York seria ainda um seguidor de Antonio Gramsci. Até Tucker ficou chocado. Não por amar De Blasio, mas pela dificuldade de seu entrevistado pronunciar o sobrenome do pensador italiano: Gramsci soou como Grant’s (o uísque, R$ 59,90 no Magalu). Sem dizer que Bananinha não sabe diferenciar um Groucho de um Karl.

O bajoulo Queiroga também não sabe, como também desconhece a ética médica e a cerimônia do cargo. Não se imagina um cavalheiro como Adib Jatene usando o dedo do meio para xingar adversários. Mas se pode imaginar o baba-ovo com o dedo no nariz.

Ainda antes de transformar o general Augusto Heleno no Zangado da Branca de Neve, o bozonarismo tingiu os cabelos de Carla Zambelli e ainda deturpou a honrada profissão médica. De repente, com apoio parvo do Conselho Federal de Medicina, o médico passou a ser alguém de quem se deve suspeitar até prova em contrário. Antes de marcar a consulta, não se perguntará mais a faculdade onde o profissional fez seu curso. Mas secretária terá de ouvir seguidamente:

— O doutor é bozonarista? Acredita na Terra plana? (Se for, cuidado: o paciente pode sair de lá com a aparência do Zé Trovão.)

Pena que Augusto Heleno não presenteie seus colegas de ministério com livros. Poderia oferecer a leitura do novo Julian Barnes, “O homem do casaco vermelho”. É a história deliciosa de Samuel Pozzi, considerado o pai da ginecologia francesa, um herói da medicina e um dândi na Paris da Belle Époque. Amante de Sarah Bernhardt, possível inspirador do Dr. Cottard de “Em busca do tempo perdido”, de Proust, e um cirurgião inovador em suturas nas regiões baixas, Pozzi passou seus 71 anos conquistando lindas mulheres e inovando na medicina e no financiamento de hospitais públicos. Com seu prestígio, inspirado por colegas americanos, recolheu doações de aristocratas franceses para a construção de centros de excelência.

Pozzi — isso soa estranho nestes tempos de medicina bozonazista —, como cirurgião e diretor de hospitais, alertava sobre a necessidade da assepsia antes, durante e após as operações. Mais de cem anos depois, o Bozo se recusa a usar máscara e defende a imunidade de rebanho.

Interessado em antropologia e neurologia, Pozzi traduziu para o francês “A expressão das emoções no homem e nos animais”, de Charles Darwin. Malafaia precisa ler esse livro.

Os escritos de Pozzi sobre métodos antissépticos, baseados em conversas com Lister, levaram seus colegas a salvar milhares de soldados durante a Primeira Guerra Mundial.

Sarah Bernhardt, cuja perna esquerda foi amputada após uma queda no palco (operação instruída à distância por Pozzi), o chamava carinhosamente de Dieu Pozzi.

Para décadas depois, o doutor Queiroga ser chamado apenas de capacho. 

 

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