O Estado de S. Paulo
Trata-se de uma questão constitucional, que
já deveria estar resolvida segundo a Carta de 1988.
A atual rediscussão sobre o marco temporal
de demarcação de terras indígenas sofre de um viés ideológico incontestável que
nada tem que ver com uma suposta injustiça originária que estaria sendo, assim,
reparada. Tal como está sendo apresentada, é como se estivéssemos diante de um
novo conflito entre bolsonarismo e anti-bolsonarismo, atraso versus progresso,
quando se trata, na verdade, de uma questão constitucional, que já deveria
estar resolvida segundo a Constituição de 1988. O politicamente correto se
regozija, trazendo imensa insegurança jurídica ao País. Há, aqui, uma infeliz
sobreposição temporal que termina obscurecendo a questão central.
Preliminarmente, observe-se que nossa atual Constituição, em seu artigo 231, estabeleceu claramente o marco temporal como sendo aquele quando de sua promulgação, reconhecendo territórios indígenas às tribos que, no presente, então ocupavam aquelas terras. Não se trata de qualquer ocupação passada segundo uma autoatribuição. Quando do julgamento posterior do caso da Raposa Serra do Sol, em 2009, tal posição foi referendada com um justo acréscimo, a saber, que seriam também reconhecidos como territórios indígenas os que estariam, naquela época, em conflito ou contencioso, o que configuraria um esbulho persistente. A intenção foi a de evitar que expulsões recentes destituindo os indígenas de suas terras dessem origem a um direito. Dito isso, o assunto deveria estar resolvido e pacificado, não fosse o descontentamento dos perdedores, que, desde então, lutam contra a própria Constituição. É a velha história jurídica brasileira: os perdedores abusam de recursos até serem atendidos.
Não é propriamente adequado que o Supremo
Tribunal Federal (STF) se debruce sobre uma questão pacificada do ponto de
vista jurídico só porque a sua composição mudou e os descontentes se agitam com
apoio de um setor importante da mídia. Entra um novo ministro e pretende tudo
mudar, como se o mundo devesse ser reinventado, como se os ministros anteriores
tivessem julgado sem nenhum conhecimento. É um desrespeito flagrante com os
seus antecessores. É a balbúrdia como princípio hermenêutico. O Supremo deveria
ser supremo, definitivo em suas decisões, sob pena de deixar de sê-lo
tornando-se fonte permanente de conflitos. O princípio não poderia ser nova
composição, nova decisão.
Para ter uma ideia mais precisa dos
territórios indígenas no País, atente-se para os números: 1) 14,1% do
território nacional é constituído por terras indígenas, correspondendo a 119,8
milhões de hectares, concentrados sobretudo nas Regiões Norte e Centro-Oeste;
2) se não houver nenhum marco temporal que imponha um limite, as áreas
reivindicadas e em estudos remontariam a outros 117,12 milhões de hectares, o
que corresponderia a 27,8% do território nacional, situados principalmente nas
Regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste, áreas de intensa atividade agrícola e
pecuária, além de centros urbanos.
Aliás, se formos seguir à risca a tese dos
“direitos originários”, as desapropriações deveriam começar pelas cidades de
Salvador e Rio de Janeiro, com os prédios sendo demolidos e os proprietários
sendo, segundo a atual regra, expropriados, o que ocorre usualmente no mundo
rural. Afinal, foi lá que aportaram primeiro os portugueses! O absurdo deste
raciocínio mostra bem ao que pode levar, ao seu extremo, a anulação do marco
temporal de demarcação de terras indígenas.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), a população indígena é constituída por 896 mil índios, e
502 mil vivem em territórios indígenas e 315 mil fora deles, boa parte em zonas
urbanas. Nestas não há problema fundiário, mas de política social, porque
sofrem eles de preconceito e com educação e saúde precárias. Urge que o Estado
intervenha, aqui, efetivamente, não ideologizando um problema grave de
injustiça. Logo, em torno de 500 mil indígenas estariam reivindicando 27,8% do
território nacional. Não há algo errado nisso?
No que diz respeito à zona rural, os
conflitos têm se multiplicado, opondo agricultores com posse e/ou títulos de
propriedades, outorgados pelo próprio Estado, e grupos de índios que
reivindicam o que consideram também como seus direitos. Estaríamos diante de
uma oposição de direitos que poderíamos considerar como justos de ambos os
lados. Como resolver? A solução seria simples, não fossem os interesses dos que
vivem dos conflitos. Muitas ONGs ficariam sem trabalho.
Com efeito, bastaria que, em caso de uma
disputa, o Estado constituísse uma reserva indígena no local em questão,
comprando terras, a valor de mercado, e indenizando os seus proprietários. Os
agricultores teriam os seus direitos preservados e os indígenas, os seus
igualmente assegurados. A justiça seria feita pelo atendimento a ambos os
direitos. Na situação atual, há verdadeira expropriação, com os empreendedores
rurais sendo abandonados à própria sorte.
Não se repara uma injustiça com outra
injustiça!
*Professor de filosofia na UFGRS.
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