Folha de S. Paulo
Na Argentina, conflito é intrapartidário
sobre o controle da Presidência; aqui, interpartidário
A derrota do governo nas primárias
legislativas argentinas provocou um tsunami institucional. Quatro
ministros associados à facção kirchnerista do gabinete do presidente Alberto
Fernández pediram demissão.
Cristina Kirchner, a vice-presidente, acionou sua artilharia e pediu a cabeça
do poderoso chefe de gabinete, que foi também substituído, e do ministro da
Economia.
A eleição ocorrerá daqui a dois meses, mas as primárias legislativas importam porque a Argentina é o único país em que elas são obrigatórias para o eleitor e para os partidos. Assim, espera-se que a foto de agora seja consistente com a de novembro. As eleições legislativas ocorrem no meio do mandato para renovar metade da Câmara dos Deputados e 1/3 das províncias no Senado; o governo deve perder a maioria nas duas casas.
A Argentina passou a adotar a representação
proporcional (RP) apenas em 1963, 30 anos após o Brasil, permitindo que se
forjasse disputa polarizada entre radicais (UCR) e peronistas (PJ).
Mas a lista é fechada. Consequentemente, o sistema partidário é fragmentado,
mas não hiperfragmentado, como no Brasil. No plano subnacional, as alianças
fogem à lógica bipartidária devido, entre outras coisas, à existência de
(robustos) partidos provinciais, os quais são proibidos entre nós.
A lista fechada garantiu o domínio de
governadores nas províncias até a introdução das primárias em 2009, com o que
se buscou democratizar internamente os partidos. Nelas, a disputa se dá entre
facções através de centenas de "sublemas" (listas com dois ou mais
candidatos). As sublegendas incentivam a proliferação de facções; a lista
aberta, a de partidos.
A rebelião da facção à esquerda do
peronismo é fogo amigo, dado que a impopularidade de Fernández se tornou tóxica.
A disputa é intrapartidária, enquanto entre nós, devido à hiperfragmentação, é
intracoalizão. O protagonista aqui é o centrão, que não é um ator unitário e
enfrenta problemas de coordenação. Também não tem candidato presidencial, o que
é característico de partidos pivotais.
O conflito na Argentina é sobre o controle
da presidência institucional por um partido majoritário; aqui é
interpartidário, no interior da coalizão de um presidente hiperminoritário que
sequer tem partido.
Os disparos de fogo amigo serão deflagrados
apenas quando um limiar de impopularidade de Bolsonaro for atingido: quando o
apoio ao presidente se restringir ao bolsonarismo raiz, que é hostil ao próprio
centrão. O saldo líquido de custos e benefícios para o grupo então será negativo.
Some-se a isso o fato que à medida que as eleições se aproximam, a ocupação da
máquina terá retornos decrescentes.
Alerta amarelo.
*Professor da Universidade Federal de
Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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