O Globo
Em quase seis meses de trabalho, a CPI da
Covid ouviu 68 pessoas em depoimentos transmitidos ao vivo na TV. Os senadores
questionaram políticos, militares, empresários e lobistas. Mas não deram voz a
um único representante dos povos indígenas.
Os índios não foram convidados nem para a
sessão que ouviu parentes de vítimas da pandemia. Isso ajuda a explicar o
tratoraço que removeu a acusação de genocídio do relatório final da CPI.
O texto do senador Renan Calheiros sugeria
o indiciamento de Jair Bolsonaro pela prática do crime, tipificado na lei
brasileira e no Estatuto de Roma. Também seriam enquadrados o presidente da
Funai, Marcelo Xavier, e o secretário especial de Saúde Indígena, Robson Santos
da Silva.
As propostas de indiciamento não significavam que os três seriam condenados. Mas retirá-los do relatório significa absolvê-los antes da abertura de uma investigação formal.
A CPI enumerou diversas ações e omissões do
governo que transformaram os povos indígenas em alvo fácil para o coronavírus.
Bolsonaro chegou a vetar 16 pontos de uma lei que o obrigava a proteger as
aldeias. Negou-se a fornecer água potável, comida e material de higiene. O
capitão ainda iludiu os índios com a distribuição de remédios ineficazes. E
resistiu a incluí-los no grupo prioritário da vacinação, o que só ocorreu por
ordem judicial.
Em parecer enviado ao Senado, a Comissão
Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB apontou “graves
indícios da prática do crime de genocídio”. O texto original de Renan
concordava com a tese. “O que distingue a morte de centenas de indígenas da
morte de centenas de milhares de concidadãos é, fundamentalmente, a intenção de
submeter esse grupo específico da população ao risco de contágio. Atitudes
deliberadas do governo ajudaram a produzir esse efeito”, escreveu o relator.
Na reta final da CPI, os senadores Omar
Aziz e Eduardo Braga articularam a retirada da acusação de genocídio. Eles se
elegem pelo Amazonas, onde vigora a máxima de que índio não dá voto. Militares,
ruralistas e pastores evangélicos costumam endossar o discurso anti-indigenista
do Planalto.
Para evitar uma derrota, Renan cedeu à
pressão horas antes de ler do relatório. O presidente da Funai, delegado da PF,
e o secretário de Saúde Indígena, coronel do Exército, livraram-se de qualquer
tipo de indiciamento. No caso de Bolsonaro, o crime de genocídio foi trocado
por crime contra a humanidade.
Apesar do recuo, o documento preservou 77
páginas que podem complicar o capitão num eventual julgamento no Tribunal Penal
Internacional. O texto mostra que ele já perseguia e discriminava os índios
antes da pandemia. Depois passou a sabotar as medidas que poderiam protegê-los.
“O estímulo à presença de intrusos nas
terras indígenas e a negligência deliberada do governo federal em proteger e
assistir os povos originários foram aliados do vírus, produzindo efeitos
combinados”, afirma o relatório. “Com relação aos indígenas, o governo tratou o
vírus não como um risco, mas como uma oportunidade”, conclui.
As marcas do genocídio ainda estão lá,
mesmo que seja com outro nome.
Nenhum comentário:
Postar um comentário