A primeira das interpretações possíveis -
aquela que mais diretamente aciona a intuição e os sentidos de quem assistiu à
bizarra entrevista coletiva de ontem à tarde – é a de um canastrão ébrio,
delirante, inconsciente do seu script. O ex-posto de conveniência de um
chefe mais aventureiro do que ele, que de há muito não se abastece com ele e
sequer passa por perto dele, posa, tal qual um apóstolo de religião extinta ou
um poeta de língua morta, de guardião de um teto de gastos imaginário enquanto se
desnuda ensopado pelo aguaceiro político e fiscal que lhe tirou o prumo, a
equipe e o que lhe restava de dignidade. Patético agonizar de um paciente
terminal, ao qual não faltou uma cena que lembra outra. Em maio de 2020, o
então ministro da Saúde, Nelson Teich, também em coletiva, ouviu perplexo, da
boca de um repórter, a notícia de uma declaração de Bolsonaro que desmoralizava
o que ele, ministro, acabara de afirmar.
Foi constrangedor comparar sua cara de traído, derradeiro sabedor da
situação em que se metera, com o riso zombeteiro do general Pazuello, seu
futuro sucessor, divertindo-se com a saia justa do condenado. Pois foi do mesmo
sarcasmo o sorriso de Bolsonaro quando Guedes errou, ontem, o nome do novo
auxiliar que anunciava na cena do “fico”. Sem noção do próprio papel e do lugar
subordinado que ocupa, o ministro jactava frases baluartistas sobre um país
inexistente e supunha um “acordo” seu com o presidente, a quem não obedece, mas
com quem negocia.
Passado o impacto da impressão que acionou a intuição da agonia pública e indigna de Paulo Guedes, apareceu lugar para um raciocínio mais ajustado à imagem do dia do fico. Dela decorre uma segunda linha de interpretação do episódio e do processo em que ele se insere, a qual, pelo que se pode notar, faz, até aqui, mais fortuna na cobertura da imprensa. Para o bem de poucos e felicidade particular dos que não tem noção do povo e da nação - vítimas reais da pobreza e doença adensadas pela perversidade de um desgoverno - o presidente fez um afago no ministro que é o seu elo com o mundo da economia. Pressionado pelo desastre das bolsas e do câmbio, de um lado e pelo apetite patrimonialista de sua base congressual, de outro, Bolsonaro pisou no freio com os políticos para prestigiar seu ministro, o qual, em retribuição, reviu a suposta inclinação a pedir demissão. Supõe-se que o mercado raciocina que ruim com Guedes, pior sem ele. Nada que signifique perigo do centrão perder a condição objetiva de aliado preferencial do Presidente, na hora do “vamos ver”. É adiamento de um desfecho, o que por si só mostra a simultânea fragilidade da situação política do governo e do próprio Bolsonaro, premidos por um caos econômico, uma crise social e uma alta rejeição popular. Que dizer do futuro de um governo para o qual o ébrio da banca ainda é uma âncora?
O contraste entre as duas interpretações é
pouco relevante, se comparado à situação de desgaste que nenhuma delas consegue
ocultar. As reações de Bolsonaro e Guedes à adversidade que os põe na defensiva
são, igualmente, de terceirizar responsabilidades. Bolsonaro sempre apontou o
dedo para o isolamento social provocado pelos governadores e pelo Judiciário;
Guedes lembra que inflação é assunto do BC, que precisa “correr atrás”.
Anestesiado por angústias de curto prazo, Guedes forja um discurso por um “ajuste
fiscal mais brando, com abraço social mais longo”. Ao BC cabe aumentar juros
para conter a inflação que afeta o povo. Inflexão ao social útil à satisfação
da banca. A situação permite uma terceira
interpretação, segundo a qual Paulo Guedes e políticos do centrão lutam por
restos, em meio a escombros, sendo Bolsonaro menos árbitro e mais refém dessa
disputa.
A esse respeito, a coluna de Andrea Jubé (“Não
tem bala de prata para a economia - Valor Econômico, 22.10.21) traz abordagem
original do atual contexto pré-eleitoral cuja fonte é o economista e consultor
político Mauricio Moura, fundador do Instituto Ideia Big Data. A
controvérsia que ele abre com as previsões predominantes em análises de
cenários para 2022 instiga a reflexão. Para Moura, o grau de dificuldades de
Bolsonaro para obter a reeleição justifica que ele, apesar de ocupar, hoje, o
segundo lugar nas pesquisas, seja considerado como “terceira via”, sendo Lula e
um candidato, ainda oculto, da centro-direita, as vias mais prováveis de estarem
presentes no segundo turno. Considera que o prazo
de um ano é apertado para se recuperar uma economia que, no momento, produz
problemas sociais (desemprego, inflação, pobreza, fome, fechamento de pequenos
negócios) em níveis de gravidade comparáveis aos de 1988. A menção àquela
conjuntura nos lembra de que na eleição de 89 o legado econômico-social do
governo Sarney teve rejeição quase unânime, entre duas dezenas de candidatos
presidenciais.
Ao lado disso - e em conexão
lógica com isso – Moura salienta os índices de ruim e péssimo quase
consolidados na marca de 55% e um dado, talvez o mais importante para o
contexto, que aqui se discute, de disputa política em torno do auxílio social,
encarado como uma espécie de tábua de salvação do governo. A má notícia para
Bolsonaro seria que apenas dez por cento dos eleitores que consideram o governo
regular (grupo no qual repousa, em tese, algum potencial de crescimento para
ele) estão nas classes D e E. Se essa informação é precisa, fica uma certa
impressão de que ela não justifica tanto barulho na atual queda de braço entre
Guedes e o centrão. Fica no ar, como complemento dessa terceira interpretação, a
sensação de que o conflito público foi aquecido para que dessa vez não haja
dúvidas sobre o pai da criança do auxílio Brasil. Turbina-se uma crise “entre a
política e a economia” (disjunção funcional ao apoliticismo reinante) para não haver
divisão de louros entre Executivo e Legislativo, esse comparecendo – ao
contrário do ocorrido com o auxílio emergencial de 2020 – apenas com o carimbo
formal. Sendo tema de acirrada controvérsia, o auxílio adquire também valor
simbólico de opinião pública, podendo afetar o comportamento eleitoral de bem
mais gente do que seus beneficiários diretos. Não à toa sobraram farpas de
Guedes ao Senado de Rodrigo Pacheco, cujo vagar na votação de alterações no IR
teria obrigado o governo a conceber o mix alternativo que soma à PEC dos
precatórios o auxílio Brasil a vulneráveis e, de quebra, a caminhoneiros.
Pode-se negar tudo a Bolsonaro menos o reconhecimento do seu faro apurado para
rivais.
Mas a realidade desafia as fabulações.
Uma espécie de tempestade perfeita aguarda Bolsonaro na esquina, pois há a
incompetência gerencial do governo e a propensão do presidente a se dirigir
primordialmente ao seu grupo de eleitores mais fiel. Cético quanto à
sustentabilidade de fases “moderadas” de Bolsonaro, o mesmo Maurício Moura o vê
repetindo o erro que desgraçou Trump. Por outro lado, diz que se Bolsonaro conseguir se manter
à frente de todas as candidaturas do centro e assim chegar ao segundo turno
contra o PT (o que se pode dar também, caso o centro não se apresente
razoavelmente unificado), ganharia competitividade no segundo turno, porque o antipetismo voltará a aflorar, fazendo Bolsonaro ser,
outra vez, beneficiado pelo voto plebiscitário.
Ler essa última reflexão de Moura, trazida
por Jubé, fez-me experimentar um temor que se achava aplacado, há meses, em
relação ao risco de reeleição de Bolsonaro. Se hoje, ele pode ser “terceira via”
porque tende a não chegar ao segundo turno, a condição para isso se confirmar é
haver política inteligente na oposição de centro (para deslocá-lo do segundo
turno) e na oposição de esquerda, para, em caso de fracasso do centro, adotar
um discurso mais amplo para contemplá-lo e assim evitar a polarização extremada
que pode devolver Bolsonaro ao páreo. Esse é um perigo que o país e a
democracia não podem correr, por desagregação do centro, ou pela estreiteza da
esquerda, ou pelas duas coisas.
Nesse sentido preocupam certos fios
desencapados que se mostram em projetos de candidaturas excessivamente
autárquicos e personalistas e, também, na gana de espetáculo que ameaça a
credibilidade e a consequência dos resultados da CPI do Senado. Se um senso de centro
político moderador não tirar de tempo esses fios, um festival de tiros no pé
pode dar a Bolsonaro saídas que hoje não tem. Algumas das imprudências podem
ter como alvo justamente inviabilizar a agregação de uma oposição de centro. Isso
interessa objetivamente a Lula, que tem parceiros no centro e na direita para
ajudá-lo a ominar o centro, por se imaginar imbatível num segundo turno contra Bolsonaro.
Convém pensar em como agirá o eleitor conservador comum (majoritário no
eleitorado) diante da perspectiva do PT retornar ao governo. Dependendo do tom
da campanha lulista, mesmo decepcionado com o ‘mito”, esse eleitor pode olhar para
o Bolsonaro de carne e osso que emergir, por exemplo, do auxílio Brasil e usar,
na urna, o metro usado em 2018. Claro que o PT não pode se anular ou se imolar
por causa disso. Mas na sua busca legítima de chegar ao segundo turno não
precisa confundir tanto os inimigos.
Nenhum cuidado é demasiado quando se trata
de bloquear o caminho ao reagrupamento do bloco reacionário que elegeu
Bolsonaro em 2018. O ex-deputado Rodrigo Maia, por exemplo, atualmente
secretário do governo de São Paulo, está certo ao dizer que o adversário do
centro, a ser deslocado do segundo turno, deve ser Bolsonaro e não Lula. Nada a
opor a essa tese geral. Mas o discurso
se contradiz e por isso é pouco veraz ao bater continência ao governador paulista.
Parece que o adversário real de Maia é a centro-direita, onde granjeou
desafetos. Eixo que terá boa chance eleitoral se unificado, o que será mais
difícil se Doria vencer as prévias do PSDB. Maia quer aliança preferencial com
o PDT, subestimando, talvez, a relevância do campo do qual ele próprio provém.
Como se Doria pudesse existir fora da direita, indo do centro à esquerda, o que
não é real.
É um discurso que, além de agradável a Doria,
pode ser útil, ou neutro, para se eleger deputado no Rio, mas pouco agregador
para a eleição presidencial. É cada dia mais claro que, para ser competitiva e
deslocar, de fato, Bolsonaro do segundo turno, uma aliança teria que ser do
centro (PSDB, MDB, PV, Cidadania) com o PSD e o União Brasil. Seria bom o PDT
estar nela também, mas todos sabem que esse partido só fará aliança se na
cabeça estiver Ciro Gomes, candidato carente de prestígio entre partidos da
direita, embora (ou até porque) corteje seus eleitores. Se houvesse a hipótese
de o PDT puxar o tapete de Ciro para celebrar uma aliança sem a cabeça da chapa
seria para apoiar Lula e não alguém do centro ou centro-direita, muito menos
Doria.
Claro que tudo isso pode mudar em um ano, mas
a possibilidade que hoje parece ainda haver de uma agregação ao centro que desminta
a previsão de um segundo turno sangrento entre bolsonarismo e lulismo é outra:
está em Eduardo Leite adotar postura menos evasiva, ser menos artificial e
genérico no discurso, conseguir ganhar as prévias do PSDB e ser, quem sabe, um
vice politicamente representativo numa chapa encabeçada por alguém do campo
liberal- conservador, como Rodrigo Pacheco, por exemplo.
Não se trata aqui de gostar ou não dessa
composição (particularmente vejo, entre os dois, pouca diversidade de atitude e
estilo), mas de ver que é a opção que parece sobrar, a uma terceira via, para
ter alguma cara de frente política. Ainda que com a ressalva de que sobre a
estratégia de Gilberto Kassab em filiar Pacheco ao PSD e lançá-lo candidato paira
a suspeita de que é jogo combinado com Lula para o segundo turno. Aliás,
boataria mais afoita tenta tirar a bucha do balão antes que ele se acenda e
suba, espalhando até a ideia de que Pacheco poderia ser vice numa chapa com o
petista. A ordem natural das coisas é outra, pois Pacheco parece querer embicar
sua nave no exato momento em que o “fico” de Paulo Guedes sinaliza o
prolongamento de uma batalha intensa pelos recursos materiais envolvidos no
fundo público que o governo gerencia (ou ao menos deveria). Dessa batalha
chapa-branca fatalmente perdedores serão expelidos e o presidente do Senado tem
perfil sereno, tolerante e acolhedor, propício a virar imã e não a ser
imantado. A ver.
Como nada isso está combinado com os
eleitores, Pacheco, se vier a ter em torno de si um arco de alianças amplo,
poderia virar agente, em vez de novo solvente da terceira via. Embora tenha
longa estrada a percorrer em busca de relevância eleitoral para o seu nome, ele
tem cancha, poder de articulação e meios institucionais, caso performances de
prima-donas, às vezes histriônicas, do trio que comanda a CPI da pandemia não
prejudiquem a credibilidade do Senado como possível pista de decolagem de uma
candidatura moderada.
Diante de óbices, até aqui não superados, para
que Luiz Mandetta convença deputados do União Brasil (principalmente os
egressos do ex- PSL) a admitirem lançar um candidato presidencial sério, aceitando
assim repartir a farta cota do partido no fundo partidário, Pacheco, pelo PSD,
parece ser opção mais à mão para o tal projeto de terceira via, ainda que carregada
de incerteza sobre os passos subsequentes que poderão ser dados por ele, em
diferentes direções. Isso deve ser ressalvado, não porque lhe falte discurso ou
compromisso democráticos para eventualmente ser uma opção também voltada ao
centro. Mas porque interlocuções que ele mantém, a partir da presidência do
Senado, emprestam contorno mais enigmático ao desenho do arco político que pode
reunir. Entre ser vice de Lula e candidato de uma direita governista dissidente,
tudo, a princípio, é possível.
Nesse sentido, Mandetta seria caminho menos
oblíquo e mais próximo ao perfil desejado por quem busca agregar um centro
democrático com mais cara de oposição. Suas chances de vingar como opção
agregadora dependem, no entanto, do processo adquirir andamento mais incisivo e
ousado, no sentido de formulação de uma plataforma social democrática, porque,
embora provenha da centro-direita, tem pendor a um discurso social, ainda inconcluso,
mas perceptível nos movimentos de caráter unitário que ele tem feito até aqui.
Afora Pacheco ou Mandetta, opções
aparentemente mais agregadoras, há um arquipélago de jogos solteiros, como os
de Ciro Gomes, João Doria e Datena, para não falar do de Sergio Moro, esses
dois últimos outsiders estranhos a qualquer centro. Em jogos mais
personalistas é que mora, no caso do centro, o risco acenado na análise de
Maurício Moura.
Por fim, vale prestar atenção ao que se
passa (ou deixa de passar) no território da esquerda. Estranha a quietude que,
por vezes, emana dessas paragens. Há certa acomodação à coadjuvância mesmo
diante de temas que lhe são caros, como a pauta social. Parece que, resolvido o
quem e, uma vez estando esse quem confortavelmente aclamado em pesquisas, transcorre
hiato inercial antes que se defina “o que” e “o como” fazer as coisas e de comunicá-los
ao país. O discurso de Lula é reiterativo, abaixo do seu potencial de
mobilização política e de intervenção em cada cena. Peço licença à memória de
Moraes Moreira para dizer que nesse tique, nesse taque, nesse toque, nesse
(pouco) pique Lula leva de roldão o PT e, assim, candidato e partido ficam, perigosamente,
reféns de uma fala de configuração plebiscitária, quase maniqueísta, quando
ecos da trajetória do ator – especialmente os de 2002 - permitem esperar algo
mais animado e complexo.
O tom meio nostálgico contamina e congela
as falas dos partidos da oposição de esquerda, não só a do PT. Até Boulos
recuou da ousadia positiva da sua campanha municipal e voltou a repetir jargões
de esquerda negativa. O PSB, é verdade, captou e integrou alguns pontos fora
dessa curva conservadora, como Freixo, Flávio Dino, Tábata Amaral e outros, que
tensionam o arco de uma promessa renovadora.
Mas o tom geral, mesmo entre quadros mais afeitos ao diálogo político e
nele educados, é o que se vê na fala do deputado Molon, um desses quadros e
atual líder da oposição na Câmara. Colocado diante do desafio concreto de dizer
o que a oposição quer aprovar no caso do auxílio Brasil e suas conexões com a
PEC dos precatórios, as mudanças no Imposto de Renda e por aí vai, perde-se na retórica.
Sabe que “não vai por aí”, mas não consegue indicar por onde se deve ir. Num
momento em que não se pode usar meias palavras para dizer que se deve votar,
sim, o auxílio aos mais vulneráveis, isso é dito, ou de passagem, ou num
repicar de cifras descomprometido com a exequibilidade. Falta admitir, com
todas as letras, o limite fiscal, assumir medidas heterodoxas imediatas como exigências
da emergência social, acenando com atitudes de contenção a médio e longo prazos.
E resistir à tentação do udenismo de esquerda, que aponta emendas parlamentares
e negociação política em geral como vilãs, sem dizer o que e como seria o uso
“republicano” do inevitável furo no teto de gastos.
Esses e outros limites fazem a atitude da
esquerda ser menos positiva na apresentação de proposições, atendo-se à torcida
para que seu porta-voz chegue às urnas com a aprovação popular que atualmente
tem. Dessa torcida faz parte torcer pelo fracasso prévio de uma terceira via, cujo
papel, caso se construa, será tirar Bolsonaro do páreo, ainda no primeiro turno.
Poderia ser objetivo nacional, se o diálogo entre forças democráticas fosse
maior.
*Cientista político
e professor da UFBa
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