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domingo, 24 de outubro de 2021
Rolf Kuntz - Bolsonaro e a privatização do Orçamento
O Estado de S. Paulo
Dane-se o teto, danem-se os
cuidados com as contas públicas: a prioridade número um do presidente Jair
Bolsonaro é a reeleição. Para isso será usado o Orçamento federal. O ministro
da Economia, Paulo Guedes, providenciou uma fórmula para facilitar a gastança.
O truque, muito simples, é um joguinho aritmético acessível a qualquer pessoa.
O limite de gastos será calculado a partir da inflação de janeiro a dezembro do
ano base. Pelo critério anterior, usava-se o período de julho de um ano a junho
do ano seguinte. Na feira, no supermercado e nas contas de luz e gás a
explicação é evidente. Com a infernal aceleração da alta de preços, a nova
fórmula põe muito mais dinheiro à disposição de sua excelência. Nem será
preciso desenterrar um tesouro. O relevante, neste caso, será o Tesouro
Nacional, com iniciais maiúsculas, em contraste com os padrões minúsculos do
presidente e de seus acólitos e asseclas de todos os tipos.
Ao
ajustar o teto de gastos a seus planos pessoais, o presidente reafirma, à sua
maneira, os compromissos de privatização. Ele prometeu, em 2018, vender 50
estatais no primeiro ano de mandato e usar o dinheiro para reduzir a dívida
pública. Não seguiu exatamente esse roteiro, mas tem-se empenhado em privatizar
o Estado e a política orçamentária.
O
hábito bolsonariano de confundir sua pessoa com as figuras do governo e do
Estado manifestou-se desde o começo de seu mandato, com intervenções –
injustificadas e desastrosas – na gestão de empresas controladas pelo setor
público. Uma das primeiras façanhas foi a iniciativa de censurar a propaganda
do Banco do Brasil. Admitida pelo presidente da instituição, a tentativa foi
condenada, tecnicamente, pelo ministro-chefe da Secretaria de Governo, general
Carlos Alberto dos Santos Cruz. Defensor do respeito às normas de governo, o
general foi em pouco tempo exonerado.
Houve
poucos obstáculos a esse tipo de ação. “O governo se acha dono da Petrobras, o
presidente da República diz que é o dono da empresa e quer proceder como tal”,
declarou há poucos dias o economista Roberto Castello Branco. Nomeado chefe da
estatal em 2019, perdeu o posto por insistir em administrá-la
profissionalmente. A Petrobras é uma empresa de capital aberto, com ações
negociadas no Brasil e no exterior, mas algumas autoridades parecem esquecer ou
menosprezar esses fatos. O dono da empresa, lembrou o economista, “é o Estado,
a sociedade”.
Castello
Branco, no entanto, foi moderado na entrevista ao Estado. Poderia ter dito
muito mais para descrever o privatismo de Bolsonaro, voltado em primeiro lugar
para si e para seus familiares. Convém lembrar as tentativas de impedir ou
dificultar investigações de parentes suspeitos da rachadinha e de outros
malfeitos. Essas intervenções também são uma forma, embora menos evidente, de
apropriação de funções e valores públicos, tanto quanto a distribuição de mimos
na forma de emendas parlamentares ou de benefícios a caminhoneiros.
Com a
tolerância de Guedes e o apoio de outros ministros, Bolsonaro sempre agiu como
se presidir a República fosse mero exercício de mando – em defesa, é claro, de
interesses pessoais. Nunca pareceu entender o sentido das palavras governo e
administração, nem os princípios de impessoalidade e de interesse público.
Mostra dificuldade para se integrar num partido e essa limitação parece
facilmente explicável. Seu universo grupal é formado pela família e por alguns
agregados, com destaque para a figura de Fabrício Queiroz.
Essa
concepção do mundo coletivo é incompatível com um sistema político moderno e
identificado claramente com o Estado de Direito. O envolvimento de seus filhos
nas decisões presidenciais, como se o Palácio do Planalto estivesse sob comando
familiar, confirma essa visão de mundo. A Presidência é exercida em nome da família
Bolsonaro, com a participação até de um vereador carioca distante,
frequentemente, de sua função municipal.
Quando
se percebe essa visão da vida coletiva e da política, fica mais fácil entender
por que o presidente Bolsonaro se mostra incapaz de conceber o interesse
público e, em nível mais complexo, os interesses do País na comunidade
internacional. Ao ofender parceiros comerciais importantes, como a China, o
presidente e seus filhos ameaçaram a economia brasileira. Neste ano, avançaram
na agressão ao governo chinês, pondo em risco a vacinação contra a pandemia.
Essa percepção limitada também se manifesta no apoio à devastação do ambiente,
um erro custoso para os brasileiros, em primeiro lugar, e, além disso,
incompatível com valores globais da modernidade.
O
interesse pessoal ditou igualmente a resposta à pandemia. Essa resposta foi
marcada pelo negacionismo, pela mortífera estratégia de imunização de rebanho e
pela tentativa de manter a economia em funcionamento, o tempo todo, como se a
continuação dos negócios valesse mais que milhares de vidas. Valeria, sim, para
ele, se a sustentação da atividade resultasse em votos para a reeleição. Seria
uma privatização a mais: a da vida de muitos brasileiros.
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