O Globo
O
simples fato de a CPI da Covid ter existido e resistido, apesar da tropa de
choque bolsonarista e da contrariedade do presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco, já foi notável. Duplamente admirável foi o empenho da maioria de seus
integrantes em trabalhar como gente grande, com decência e benefício claro para
a sociedade. Conseguiram dar algum compasso moral a um Brasil que, de resto,
está à deriva e expuseram as vísceras de Jair Bolsonaro, cujo método de governo
se assenta num amplo leque de tipificações penais.
Nada
a festejar, porém. Não pode haver conforto para povo algum que tem na chefia da
nação um presidente indiciado por crime contra a humanidade — no caso, contra
sua própria gente. É igualmente trevoso para a história de qualquer nação ver
seu presidente indiciado por mais outros oito crimes. É tudo de um horror
abissal, por ser factual. E por quase ter ficado enterrado nos porões do
governo, não fosse o dever cumprido pela maioria na CPI.
Cabe agora ao Ministério Público e à Justiça responder aos pedidos de indiciamento. E dar uma resposta adulta para a gargalhada com que o filho Zero Um do presidente, senador Flávio Bolsonaro, pretendeu desdenhar o documento histórico. O aspecto mais chulé da vida nacional anda esquisito — num curto espaço de tempo somos informados de que o presidente chora escondido no banheiro e de que o Marcola do PCC, líder da maior facção criminosa do país, está deprimido na prisão.
Mas
são problemas reais que deixam em torvelinho 213 milhões de brasileiros. A fome
de comer pelanca, o caos social, a extrema direita sem freios, os solavancos na
economia, a emergência ambiental, a incerteza quanto a liberdades, a degradação
geral da vida em sociedade — tudo isso entrou em marcha acelerada sob o comando
errático de um só homem, Jair Bolsonaro. Que ninguém se engane — armados de fé
e, se preciso, munidos de armas, seus seguidores mais extremados nunca lhe
faltarão no pacto de morte contra o Estado Democrático de Direito.
Talvez
o presidente e o relator da CPI da Covid, senadores Omar Aziz e Renan
Calheiros, já tenham se arrependido de ter votado pela recondução de Augusto
Aras ao cargo de procurador-geral da República. Nos Estados Unidos, o então
presidente Donald Trump sobreviveu a dois processos de impeachment porque os
senadores do Partido Republicano cerraram fileiras. Acreditaram estar fazendo
política. Na realidade, fizeram história trevosa ao deixar o caminho aberto
para Trump e sua vertente nacionalista voltarem ao poder — seja na reconquista
da maioria na Câmara e no Senado em 2022, seja com Trump de volta à Casa Branca
em 2024.
Não
se trata de alarmismo. Nesta semana, Steve Bannon, o já notório cérebro de uma
internacional fascistoide que inclui o Brasil, desafiou abertamente o Poder
Legislativo dos EUA. Simplesmente recusou-se a depor perante a comissão de
inquérito que investiga sua atuação na invasão do Capitólio de 6 de janeiro
último, quando milicianos trumpistas pretendiam impedir a certificação da
vitória eleitoral de Joe Biden em 2020. Parece pouco? Para padrões da bicentenária
democracia americana, não é. Ao deboche público das instituições, arrostado por
Bannon, vem somar-se uma acelerada limitação do direito ao voto em vários
estados decisivos do país. E esse desmonte é obra de governadores mais leais a
Trump que àquilo que os Estados Unidos de melhor deram ao mundo: o voto
universal e livre.
Por
toda parte, pipocam candidatos a clones de Trump, que Steve Bannon vai
arrebanhando e formatando em rede. Alguns ainda são meros aspirantes a um poder
menor, como a figura midiática do argentino Javier Milei, candidato a uma vaga
no Congresso nas eleições do próximo mês. Admirador declarado de Trump e
Bolsonaro, tem fala carismática e propostas de soluções simples para problemas
complexos, como manda o manual populista. Outros visam mais alto logo de cara.
Na França está em curso a ascensão meteórica e inesperada do polemista Éric
Zemmour, apresentador do canal conservador CNews , que parece querer disputar a
corrida presidencial. Situado à extrema direita de Marine Le Pen, Zemmour também
é admirador declarado de Trump, alerta contra o “declínio da França”, ataca a
imigração, o islamismo e o resto da cartilha democrática.
Sem
falar no governo a cada dia mais fechado da Polônia, primeiro a desdenhar de
peito aberto as convenções democráticas da União Europeia. Na sexta-feira, a
ainda chanceler da Alemanha, Angela Merkel, recebeu uma ovação sincera dessa
mesma União Europeia. Foi recebida pelo rei Philippe da Bélgica (a sede da EU é
em Bruxelas), homenageada com peças de Mozart e Beethoven em concerto de gala e
saudada com frases como “a senhora foi um compasso”, “as próximas cúpulas sem
Angela Merkel serão como Paris sem a Torre Eiffel”. No caso, não eram exagero —
por 16 anos ela foi âncora. Sem ela, a Europa e o mundo com Trumps e Bolsonaros
se tornarão ainda mais sombrios.
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