Quem são os nossos algozes e de onde extraem o poder com que nos assolam? Não fomos objeto de uma conquista militar por parte de um país inimigo que nos imponha pela força a vassalagem como a antiga Roma reinava em seu vasto império. Ao contrário, estamos submetidos a naturais da terra com nomes e sobrenomes conhecidos, não poucos de longa data, herdeiros da nossa história comum de contubérnio entre o latifúndio e a escravidão. Essa marca de registro do nosso DNA, tantas vezes diagnosticada e não poucas combatidas pelos que tentam extirpa-la sem êxito, persiste como mácula em nossa formação, resistente ao que foi a obra da Abolição, que deixou ao desamparo a população liberta com sua opção preferencial pela emigração massiva dos pobres europeus, e na forma de república sem povo que se criou aqui com o protagonismo dos militares e dos proprietários de terras paulistas.
Tal herança maldita, longe de perder
influência com os sucessivos surtos da modernização do país, foi preservada em
suas linhas principais, exemplar o processo de industrialização conduzido por
uma política de Estado que sintomaticamente se aliou às elites agrárias. No
caso, nada de melhor expressa essa aliança do que a legislação trabalhista do
governo Vargas nos anos1930 do que a exclusão dos trabalhadores da terra dos
direitos concedidos aos urbanos. Classicamente, configuraríamos o tipo de
modernização conservadora, confirmado nas décadas seguintes, com os resultados
nefastos que hoje se estampam aos olhos de todos como na abissal desigualdade
social reinante entre nós, raiz dos processos pelos quais as elites
proprietárias se apropriam do poder político e fazem uso dele para preservar
seus privilégios.
Raimundo Faoro, em ensaio magistral sobre a
modernização nacional procura demonstrar seus elos de ligação com as reformas
modernizadoras introduzidas pelo marquês de Pombal em Portugal de fins do
século XVIII, que se aproveitou de recursos do despotismo político para introduzi-las
ao tempo em que conservavam os setores privilegiados como a nobreza e o clero.
Sem bases novas de sustentação, suas mudanças não resistiram à duração de um
reinado e tiveram frustrados seus objetivos. Tal modelagem pombalina, conclui
Faoro, nunca abalada ter-se-ia conformado na plataforma de todas as
modernizações brasileiras, cujas mudanças sempre resultaram no resultado de ainda mais reforçar
o domínio das forças conservadoras.
Quase ironicamente, o argumento de Faoro
sugere que, por volta dos anos 1870, a tal revoada das ideias novas de que fala
a bibliografia no seu culto à ciência importado pelo positivismo mal ocultaria
o retorno do espírito pombalino de cientificismo. O lugar de assentamento
dessas novas ideias seria a das academias militares, o da Escola Politécnica e
das faculdades de medicina. O positivista Comte teria recuperado Pombal. A
emergência das novas elites intelectuais forjadas nessas instituições teria
dado origem ao pathos de um desenvolvimento e de uma industrialização induzida
pelas luzes da ciência mediante ações orquestradas por elas.
Nesse novo cenário, sob a república os
militares são investidos de papel de protagonismo e com advento do Estado Novo,
em 1937, se tornam hegemônicos na condução da política brasileira e, a partir daí,
atores privilegiados na condução da industrialização acelerada do país,
presentes na construção de Volta Redonda, na Petrobras, assim como na imensa
malha das empresas estatais. O script, longamente ensaiado cumpriria seu
enredo: a modernização brasileira teria um andamento conservador sob a tutela
militar.
O desafio a esse andamento, no começo dos
anos 1960, centrado em um programa de reformas sociais, entre as quais a
agrária, proposto pelo governo João Goulart, com ampla base popular, encontrará
seu desenlace no golpe de 1964, quando os militares se auto-investirão dos
papeis de condutores da modernização pelo alto, com atenção especial à questão
agrária, tal como se evidenciou na implantação do agronegócio.
Essa história de frustações e de
desencantos das modernizações autoritárias podem, até elas, conhecer o
sortilégio da astúcia na história, pois os processos que desatam contêm em si a
possibilidade de trazer o moderno como antídoto a elas, tal como ocorreu nos
idos dos anos 1980 quando foram derrotadas por uma coalizão ampla de forças
democráticas escorada por massivas manifestações populares. Lá como agora onde
se generaliza a percepção de que o país está sem rumo e dirigido por caminhos equívocos
que somente trazem o aprofundamento da miséria social reinante, por toda parte,
inclusive em setores das elites, soam os sinais de que isso que aí está deve
ser interrompido como solução de salvação nacional.
A derrota da fascitização da sociedade, a
essa altura consumada, culminou, como último recurso para esse governo de
militares nostálgicos da ditadura do AI-5 se manterem no poder, a cínica
aliança aos políticos avulsos do Centrão sempre aplicados em suas pretensões de
roer até os ossos o patrimônio comum. Tal mudança de rota se afasta
radicalmente das tradições modernizadoras brasileiras, inclusive daquelas que
se originaram nos meios das corporações militares. O lixo do atraso está pronto
para ser varrido.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio
Um comentário:
Prezado e admirado companheiro Werneck, boa tarde!
Não somente os fazendeiros paulistas, como também os mineiros e os fluminenses tiveram papel relevante na constituição do Autoritarismo nacional. E por que razão excluir dessa sanha maldita, os nordestinos e os nortistas?
Abçs.
{Uma singela e camarada sugestão: na falta de uma boa escrita - como era típica nos teus artigos, não se exclua de fazer uso do corretivo do "Word"...}
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