EDITORIAIS
O estado da democracia
O Estado de S. Paulo.
País sofre abalos nos pilares democráticos desde a eleição de Jair Bolsonaro, mas está longe de ser um país autoritário
Uma democracia vigorosa se sustenta sobre
um tripé formado por eleições limpas, liberdade de expressão e associação
assegurada por lei e plena vigência do Estado de Direito. É o que o cientista
político Tom Ginsburg e o jurista Aziz Huq, professores da faculdade de Direito
da Universidade de Chicago, chamam de “predicados básicos da democracia”. Falar
em retrocesso democrático, portanto, implica constatar que ao menos um dos
elementos desta tríade não vai bem, deixando capenga todo um sistema de
direitos e deveres finamente equilibrado.
De acordo com o relatório Estado da
Democracia Global 2021, publicado recentemente pelo Instituto Internacional
pela Democracia e Assistência Eleitoral (Idea, na sigla em inglês), o Brasil
foi um dos países que registraram retrocesso democrático em 2020, ano marcado
pela pandemia de covid-19. É preciso entender muito bem os eventos que
contribuíram para esse resultado a fim de evitar uma erosão ainda maior dos
pilares democráticos no País no futuro próximo.
O Idea avalia o estado da democracia em cerca de 160 países, nos cinco continentes, há décadas. Desde 2016, o Brasil é um dos países-membros da organização intergovernamental, sediada em Estocolmo. Para medir a higidez da democracia nos países avaliados, o Idea leva em consideração critérios como a legitimidade dos governantes, a participação da sociedade nas definições de políticas públicas, a impessoalidade da administração pública, a garantia de direitos fundamentais e o funcionamento do sistema de freios e contrapesos.
Em relação ao Brasil, nenhum reparo há de
ser feito à legitimidade do presidente Jair Bolsonaro, escolhido para dirigir o
País pela maioria dos eleitores após uma eleição incontestavelmente limpa.
Tampouco se pode dizer que a sociedade não participa dos debates para
formulação de políticas públicas. O Brasil é uma democracia representativa e o
Congresso está em pleno funcionamento, em que pesem as muitas críticas que
podem ser feitas às suas deliberações. Igualmente, a imprensa é livre no Brasil
para publicar o que julga ser de interesse público. Basta lembrar que foi
graças ao jornalismo independente praticado por este jornal há quase 147 anos
que a sociedade tomou conhecimento do escândalo do “orçamento secreto”, o que
levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a proibir a obscena apropriação de
recursos públicos para compra de apoio parlamentar ao governo federal.
Logo, não seria correto – como não fez o
Idea – classificar o Brasil como um país marcadamente autoritário. Isso não
significa, contudo, que os pilares democráticos não estejam sendo
constantemente atacados por Bolsonaro desde sua eleição para a Presidência da
República. O Idea cita nominalmente o presidente brasileiro como o responsável
pelo retrocesso democrático apurado no Brasil.
Bolsonaro convocou e participou de
manifestações de cunho explicitamente golpista. O governo brasileiro também
patrocina uma campanha de hostilidade contra o jornalismo independente. Em sua
visão obtusa do que seja governar, Bolsonaro não concebe a divisão e a harmonia
entre os Poderes, tomando como agressões pessoais quaisquer decisões tomadas
pelos Poderes Legislativo e Judiciário que contrariem seus interesses.
Como se não bastasse tudo isso, o mais
grave, aponta o relatório, é a ameaça de Bolsonaro de não reconhecer o
resultado da eleição presidencial de 2022 caso não seja ele o eleito. A
ausência de transmissão pacífica do poder após uma eleição limpa foi a razão
que levou o Idea a incluir os EUA, pela primeira vez, no rol dos países que
registraram retrocesso democrático em 2020. Entre arroubos e recuos de
conveniência, Bolsonaro tem dado sinais de que não apenas não passará a faixa
presidencial para seu sucessor, caso seja derrotado no pleito, como mobilizará
uma súcia de apoiadores para provocar no Brasil a mesma confusão que Donald
Trump provocou nos EUA ao ser derrotado por Joe Biden.
Todo cuidado é pouco. Bolsonaro não tem a
sociedade a seu lado para aventuras liberticidas. Se confusão houver, será por
conta de fanáticos, sobre os quais deve recair todo o peso da lei. Isso sim é
democrático.
Vulnerabilidades da agricultura
O Estado de S. Paulo
Organismo da ONU mostra como a pandemia
afetou a produção mundial de alimentos e aponta fragilidades em vários países,
como o Brasil
As previsões para a próxima safra
brasileira de grãos, que deve alcançar 289,8 milhões de toneladas, 14,7% mais
do que na safra 2020/21, mostram como a agricultura brasileira resistiu aos
impactos mais fortes da pandemia e readquiriu vigor quando os piores efeitos começaram
a ser superados. Ainda assim, o número de brasileiros que passam fome aumentou.
Obviamente isso não é consequência da falta de alimentos, mas da falta de
renda. Entre outros muitos problemas que a covid-19 acentuou ou gerou está o do
empobrecimento de parcelas da população mundial que já tinham dificuldades de
acesso a bens e serviços essenciais.
O efeito da pandemia sobre a produção,
distribuição e consumo de alimentos tem levado autoridades nacionais e
organismos internacionais a discutir meios que mitiguem as consequências de
crises futuras. Em relatório no qual avalia a capacidade de resistência da
agricultura mundial à pandemia, a Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO) aponta pontos de sustentação e de fragilidade
nos diferentes países. Mostra também que, apesar de sua pujança – visível não
apenas nos números expressivos da produção e da produtividade, mas no espaço
que conquistou no mercado mundial –, o agronegócio brasileiro não está livre de
riscos.
O aumento da pobreza é uma das
consequências sociais mais graves da pandemia observado em boa parte dos
países, e não apenas nos mais pobres. No Brasil, segundo a FAO, das pessoas que
perderam renda na pandemia, mais de 60% passaram a receber metade ou menos do
que recebiam antes da crise sanitária; praticamente um terço perdeu de 25% a
50%. Em consequência, diminuíram os gastos com alimentação nos grupos mais
afetados. Daí o aumento das pessoas que passam fome.
Mas a crise gerada pela covid-19 também
acentuou alguns e permitiu identificar outros pontos de vulnerabilidade de um
setor produtivo normalmente sujeito a crises causadas por enchentes, secas,
guerras ou oscilações muito fortes dos preços. São vários os riscos a que está
sujeita uma atividade essencial que produz 11 bilhões de toneladas de alimentos
por ano e emprega, direta e indiretamente, 4 bilhões de pessoas, segundo a FAO.
Também aqui o Brasil mereceu citação no relatório.
A produção de alimentos envolve um sistema
complexo, com inúmeras fases e agentes. Crise numa etapa pode afetar todo o
conjunto. A disponibilidade de infraestrutura adequada para permitir o
escoamento da produção da fazenda até os centros de distribuição,
comercialização ou exportação, por exemplo, está entre os principais fatores da
eficiência do setor.
No Brasil, onde predomina o transporte
rodoviário, a rede de estradas é insuficiente, sua conservação é precária em
vários pontos e faltam rotas alternativas em caso de anormalidades. Assim,
chuvas fortes podem interromper importantes redes de escoamento da produção em
direção aos centros de consumo ou aos portos, o que encarece o produto e cria o
risco de perda de parte da carga ou de interrupção do abastecimento. Greves de
caminhoneiros mostraram como o transporte nacional de mercadorias pode ser
prejudicado com a paralisação do fluxo em pontos nevrálgicos da malha
rodoviária. No limite, fragilidades como essa podem resultar em crise de
suprimento ou alta de preços internacionais.
A concentração das exportações em
determinados mercados ou em determinados produtos é outro risco à produção
agrícola apontado pelo relatório da FAO. O Brasil é frágil também nesse ponto.
No Brasil e na Argentina, diz a FAO, mais de 70% das exportações de proteína
vegetal estão concentradas em dois produtos, soja e milho. Essa concentração
torna o País mais vulnerável a choques de preços dessas commodities. Também a
concentração das exportações agrícolas em um mercado, no caso o da China,
aumenta a vulnerabilidade da agricultura brasileira.
A FAO adverte que, por ser o Brasil um grande exportador agrícola, o que acontece aqui pode afetar o mercado mundial de alimentos – além, obviamente, do mercado doméstico.
Emendas opacas
Folha de S. Paulo
São disparatados argumentos do Congresso
para não revelar beneficiários de verba
É descabido que o comando do Congresso se
mostre disposto a descumprir a determinação do Supremo Tribunal Federal de dar
publicidade total às emendas de relator, utilizadas como moeda de troca na
negociação entre o governo Jair Bolsonaro e os partidos aliados.
Em petição encaminhada ao STF, assinada
pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), com o apoio do congênere
da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pretende-se manter em segredo os parlamentares
beneficiados pelas emendas de relator (RP9, no código orçamentário) em 2020 e
2021.
A justificativa esdrúxula é a de que a
norma não pode retroagir, pois não havia previsão legal de publicidade antes da
decisão da corte. Seria uma impossibilidade "fática e jurídica"
identificar os solicitantes dos recursos.
Eis, de início, a confissão de que não
houve cuidado mínimo no trato dos recursos abrigados nessas emendas, cujo
volume se expandiu até os R$ 16,8 bilhões de 2021.
Seria também uma inovação na lógica
parlamentar —nunca se viu no mundo um político que envia recursos para seus
redutos e prefere permanecer incógnito.
Há algo de muito estranho, pois, nesse
desejo de anonimato. O temor de rebelião na base pela revelação de privilégios
na alocação dos valores pode ser o menor dos problemas para as lideranças.
Do ponto de vista jurídico, é insustentável
o argumento de que a lei não exigia transparência. Os princípios de publicidade
e impessoalidade no uso de recursos públicos estão na Constituição e norteiam
todo o Orçamento.
Se o detalhamento dos pedidos e uso das
verbas não estava codificado como no caso das emendas individuais e de bancada,
é porque as RP9 antes eram utilizadas como mero mecanismo de ajuste técnico, em
montantes modestíssimos.
O agigantamento do seu uso decorre do modus
operandi dos atuais comandantes do varejo político, que obtiveram poderes
inéditos.
Não se trata, por fim, de uma tentativa de criminalizar as emendas de relator,
como disse Arthur Lira, numa generalização que só se preza ao ilusionismo
retórico.
O que se quer é criminalizar aquelas que
apresentarem motivos para tal —e para que isso seja possível é preciso saber os
nomes dos solicitantes, para onde foram direcionados os recursos do erário e a
quem beneficiaram.
Ao menos o freio imposto pelo Supremo já
suscita mudanças. Serão revelados as entidades e os municípios beneficiados nos
últimos dois anos e doravante também os parlamentares envolvidos nos pedidos.
De todo modo, a corte não pode aceitar o meio-termo e deve manter a exigência
de transparência total do que já foi feito.
A lei não basta
Folha de S. Paulo
Mais que proibir abusos como os do caso
Ferrer, cumpre mudar cultura judicial
Recém-sancionada
pelo presidente Jair Bolsonaro, a chamada Lei Mariana Ferrer proíbe
ofender vítimas ou testemunhas durante julgamento, em especial, mas não
somente, em crimes contra a dignidade sexual, como o de estupro.
O apelido do novo diploma legal faz alusão
à influenciadora que acusa o empresário André de Camargo Aranha de estupro —e
foi constrangida de forma tacanha e machista durante a audiência judicial em
que o acusado foi absolvido em setembro de 2020.
Depois, Aranha teve sua absolvição
confirmada por decisão unânime do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em outubro
deste ano. Foi a audiência na primeira instância que motivou a nova legislação.
Imagens divulgadas pelo site The Intercept
mostraram o sexismo na prática judicial. Vê-se o advogado do réu, Cláudio
Gastão da Rosa Filho, exibindo fotos de Ferrer quando atuava como modelo para
sustentar que o sexo fora consensual e atacá-la em termos inadmissíveis.
Falou em poses "ginecológicas" e
disse que "jamais teria uma filha do nível" de Ferrer. À Folha, Rosa
Filho argumentou que as cenas foram tiradas de seu contexto.
A nova lei pretende punir a revitimização
durante o processo judicial, qualquer que seja o resultado. Segundo o texto, as
partes "deverão respeitar a dignidade da vítima sob pena de
responsabilização civil, penal e administrativa".
Respeitá-la inclui absterem-se de
manifestações sobre circunstâncias alheias aos fatos e de utilizar
"linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da
vítima ou de testemunhas".
Relatos de abusos contra mulheres que
recorrem ao poder público são frequentes, como mostrou reportagem deste jornal.
A título de exemplo, um delegado perguntou a uma adolescente de 16 anos que
acusou ter sido vítima de estupro coletivo se ela "tinha o costume de
fazer isso, se gostava".
Entretanto a mudança na lei, ainda que mire
um problema real, por si só não basta. Sua aplicação, afinal, dependerá do
mesmo Judiciário em que viceja a cultura de impunidade por atos de colegas
magistrados, advogados e promotores.
Quebrar tais costumes demanda tempo,
informação, vigilância da sociedade e mecanismos de denúncia mais eficientes.
Cumpre ainda evoluir rumo a uma melhor distribuição de gênero no Judiciário. Na
Justiça estadual, mulheres ocupam 37,5% dos assentos; na segunda instância, a
cifra despenca para 20%.
É um descalabro o projeto que permite
anúncios de armas
O Globo
Prepara-se na Câmara mais um torpedo contra
o Estatuto do Desarmamento. Um projeto de lei do deputado Eduardo Bolsonaro
(PSL-SP) propõe liberar publicidade para o comércio de armas, hoje proibida
pela legislação. O PL 5.417/2020 permite que atacadistas, varejistas,
exportadores e importadores anunciem em veículos de comunicação ou na internet.
A medida valeria também para clubes, escolas e estandes esportivos de
atiradores, colecionadores e caçadores.
Chama a atenção o argumento esdrúxulo do
filho Zero Três. “Sem armas, o povo vira presa fácil para ditadores”, afirma.
“A história ensina que o desarmamento é política prioritária de facínoras
autoritários.” Ele repete o discurso torto do pai, o presidente Jair Bolsonaro.
Na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, Bolsonaro foi explícito em seu
projeto armamentista. “Por que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma
ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é?”, disse, dirigindo-se aos então
ministros Fernando Azevedo e Silva (Defesa) e Sergio Moro (Justiça e Segurança
Pública).
Diante de tal ideia descabida, faz bem o
relator do projeto, deputado Eli Corrêa Filho (DEM-SP), em convocar uma
audiência pública para que a sociedade possa discutir a proposta. O encontro,
marcado para amanhã, deverá reunir fabricantes, delegados de polícia e ONGs
como o Instituto Sou da Paz. O projeto está na Comissão de Segurança e ainda
terá de passar pelas comissões de Finanças e Tributação e Constituição e
Justiça.
Corrêa não esconde sua insatisfação com a
proposta. “Esse projeto vai estimular o desejo em quem hoje não tem interesse
em comprar armas. Temos de pensar nos jovens. A sociedade não está preparada
para esse tipo de publicidade, temos outras agendas de maior relevância”,
afirma.
Destruir o Estatuto do Desarmamento tem
sido uma das obsessões do governo Bolsonaro. Desde que assumiu, ele editou uma
série de decretos para facilitar a compra de armas e munições e afrouxar o
controle sobre os arsenais. Os resultados dessa política nefasta são
conhecidos. Levantamento dos institutos Igarapé e Sou da Paz, com base na Lei
de Acesso à Informação, mostrou que, nos últimos seis meses, o número de armas
registradas por civis aumentou 330%. Somente para tiro esportivo foram
concedidas 100 mil novas licenças entre abril e outubro, ou 555 por dia.
Fica cada vez mais claro que o arsenal que
o governo Bolsonaro vem pondo nas mãos de civis nada tem a ver com estratégia
de segurança, até porque uma política séria num país que registra mais de 50
mil mortes violentas por ano recomendaria restrição ao uso de armas. Trata-se
tão somente de um projeto político, perigosíssimo, de fomentar milícias armadas
para defender facções políticas. A tragédia da invasão do Capitólio, nos
Estados Unidos, demonstra até onde se pode chegar com tamanha sandice.
Embora esteja em fase inicial de
tramitação, o projeto que libera publicidade de armas não pode prosperar no
Congresso. Seria um retrocesso gigantesco num país que criou em 2003 o Estatuto
do Desarmamento para tentar frear a matança cotidiana causada pelas armas de
fogo. Expor crianças, adolescentes e jovens a esse tipo de publicidade seria um
crime. Deputados e senadores que têm um mínimo de sensatez precisam impedir
essa aberração.
Caso da tenista que denunciou assédio
sexual assombra Jogos de Pequim
O Globo
Pequim será em 2022 a primeira cidade a
sediar uma Olimpíada de Inverno depois de ter sediado outra de Verão, em 2008.
No período, a imagem do país se transformou de potência emergente em novo
império que, da telefonia 5G às baterias de carros elétricos, desafia o poderio
americano. A exemplo de Moscou em 1980, paira no ar a ameaça de que os Estados
Unidos boicotem de algum modo os Jogos de 2022. O motivo mais recente não tem a
ver com violações de direitos humanos em Xinjiang, com Taiwan ou com a guerra
comercial. Mas com a tenista Peng Shuai, ex-campeã mundial de duplas, vencedora
de Wimbledon em 2013 e Roland Garros em 2014.
Peng reapareceu faz oito dias numa imagem
de videoconferência ao lado do presidente do Comitê Olímpico Internacional
(COI), Thomas Bach, depois de mais de duas semanas sumida. A Associação
Feminina de Tênis (WTA) tentava contato desde o último dia 2, quando um post
que ela publicara na rede social Weibo desencadeou reação fulminante das
autoridades. No estilo clássico da censura digital chinesa, o texto foi
retirado do ar em minutos, comentários foram barrados, e todas as menções ao
caso passaram a ser derrubadas na internet local.
Nos países cujos cidadãos usufruem as
liberdades de expressão e informação, todos ficaram sabendo o que ela escreveu.
Não denúncias típicas de dissidentes, nem críticas ao regime de partido único
ou ao governo que ela já aplaudira no passado. Foi uma longa acusação, redigida
em tom pessoal e a custo emocional enorme, de estupro e assédio sexual contra
Zhang Gaoli, um integrante da cúpula do Partido Comunista Chinês (PCC) de mais
de 70 anos, ex-vice-primeiro-ministro, que Peng afirmou tê-la violentado pelo
menos duas vezes ao longo de uma década.
Enquanto a máquina chinesa de censura e
propaganda tentava evitar que ela servisse de exemplo a outras vítimas de
assédio no país, a repercussão no exterior foi enorme. Peng despertou
solidariedade de estrelas como Serena Williams ou Naomi Osaka e a atitude
resoluta da WTA, que pressionou o governo chinês por garantias à segurança e à
saúde dela.
Considerando a posição tíbia da China
diante das denúncias da época do movimento #MeToo, é improvável que haja
maiores consequências no país. Também é improvável que qualquer boicote
americano assuma a proporção do que esvaziou os Jogos de Moscou, em 1980, e
gerou outro dos soviéticos nos de Los Angeles, em 1984. Mesmo um boicote
diplomático — em que atletas comparecem, mas autoridades não — seria
inesperado.
Ainda que a atitude de Peng tenha pouco impacto na vida das vítimas de crimes sexuais na China, ela ajudou a expor a brutalidade da ditadura comunista. Mostrou que sediar eventos internacionais de envergadura em nada contribui para moderar o regime. Além disso, as trapalhadas dos veículos oficiais de comunicação para explicar o sumiço revelam a dificuldade da China para lidar com a pressão internacional que floresce nos ambientes onde a informação circula com liberdade.
Semana decisiva no debate sobre as emendas
de relator
Valor Econômico
A impessoalidade e a transparência devem
nortear o uso dos recursos públicos em qualquer país sério
No longínquo ano de 2018, um slogan ficou
conhecido entre aqueles que se dispunham a acompanhar a campanha presidencial
do então deputado federal Jair Bolsonaro: “Mais Brasil, menos Brasília”, diziam
o candidato e seus principais auxiliares em praticamente toda entrevista ou
evento público.
Bolsonaro era ainda apenas mais um
experiente deputado federal do chamado baixo clero, com pouco acesso ao Palácio
do Planalto e à Esplanada dos Ministérios, mas sabia do que estava falando. O
discurso tinha apelo entre prefeitos e governadores, e sinalizava àqueles que
disputavam vagas no Legislativo a possibilidade de o Congresso aumentar seu poder
nas discussões sobre a alocação dos recursos orçamentários.
Para dirimir qualquer eventual dúvida, o
então candidato detalhou em seu programa de governo o que considerava ser uma
“nova forma de governar”. De acordo com o documento protocolado no Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), um dos compromissos de sua gestão seria desconcentrar a
arrecadação de tributos com o objetivo de reduzir a burocracia, além de reduzir
o que classificava de ineficiência causada pelo controle dos entes federados
por parte da administração federal. Isso porque, prosseguia, praticamente 99%
da população vive fora da capital federal.
“Brasília não pode ser o objetivo final de
um governo”, comprometia-se, acrescentando que a missão dos seus ministros
seria coordenar esforços de governadores, prefeitos e secretários para o
cumprimento de metas claras. “Queremos uma federação de verdade. Os recursos
devem estar próximos das pessoas: serão liberados automaticamente e sem
intermediários para os prefeitos e governadores. As obras e serviços públicos
serão mais baratos e com maior controle social”.
Da teoria à prática, contudo, muita coisa
mudou. E para pior.
O governo demorou para enviar ao Parlamento
uma proposta de reforma tributária que atraísse o interesse de governadores e
prefeitos. Além disso, opôs-se ao projeto que avançava no Legislativo e acabou
travando sua tramitação. Dificilmente a atual legislatura cumprirá a missão de
reorganizar o sistema tributário nacional a contento, conforme prometido desde
a campanha eleitoral.
Por outro lado, senadores e deputados
aproveitaram a fragilidade política do governo, que precisou acelerar a
formação de uma base aliada que garantisse a Bolsonaro a conclusão do seu
mandato, para obter mais controle na definição sobre a destinação das verbas do
Orçamento. Afinal, argumentavam, autoridades do Executivo não teriam como se
opor à ampliação do dinheiro enviado para Estados e municípios, se quisessem
cumprir as promessas de 2018. Era o que precisavam para ampliar suas próprias
chances de reeleição.
Esse foi o ambiente que propiciou o
crescimento absurdo das chamadas emendas de relator ao Orçamento, ou RP9,
instrumento criticado pela falta de transparência e detalhamento sobre os
responsáveis pela alocação, destinatários e real uso dessas verbas. Por vias
tortas, portanto, cumpria-se a promessa feita por Bolsonaro de reduzir a
influência - e o controle - do governo federal em relação aos recursos
públicos.
Há de se destacar, também, que neste caso
falharam as instituições de controle e o sistema de pesos e contrapesos que
devem reger o funcionamento de uma República. O Tribunal de Contas da União
(TCU) poderia ter agido de forma mais incisiva, e o Supremo Tribunal Federal
(STF) demorou a debruçar-se sobre o tema. Apenas no dia 10 de novembro a Corte
decidiu, por 8 votos a 2, suspender a execução das emendas de relator. E desde
então os parlamentares não param de contestar o teor da sentença.
Nesse contexto, ganha importância a sessão
do Congresso marcada para hoje, na qual deverá ser debatida uma resolução que
buscará remodelar o uso desse tipo de emenda pelo relator-geral do Orçamento.
Um dos pontos em discussão é criar uma trava para evitar excessos na aplicação
desses montantes. Outro elemento central é saber se deputados e senadores
passarão a detalhar os responsáveis pela indicação dos destinos dessas quantias
e a fundamentação que os levou a fazer essas escolhas.
A impessoalidade e a transparência devem
nortear o uso dos recursos públicos em qualquer país sério. O Brasil tem a
chance nesta semana de mostrar se pretende fazer parte desse grupo.
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