Falou e Disse
Crianças aprendem lendo e escrevendo. Esse
processo trabalhado desde o início, em que as crianças vão se acostumando a
compreender o que leem e o que escrevem, torna-as capazes para aprender também
a exercer o seu protagonismo na vida que têm pela frente.
Não importa os tropeços, se a letra é
maiúscula ou cursiva, importa, sim, o conteúdo, a compreensão sobre a escrita e
a forma como a criança se vê através das suas manifestações sobre esse
processo, porque elas desenvolvem o seu próprio conhecimento.
Ao aprender, a criança vai construindo seu
aprendizado a partir da sua linguagem e sua escrita.
Era uma tarde de verão e grande calor, mas
a quadra da escola estava repleta de pais, avós, alguns tios e até irmãos dos
que iam se formar no ABC, uma tradição nas nossas escolas brasileiras.
Concluir o ABC, numa referência histórica a
aprender as primeiras letras, significa estar apto a entrar no ensino
fundamental, dominando os princípios básicos da escrita, da leitura. Atualmente
já se sabe que inclui também conhecimentos sobre matemática, história geografia
e ciências.
As crianças das três turmas do Primeiro Ano Escolar da Escola Polichinelo, felizes e saltitantes, postaram-se em suas cadeiras para ouvir as professoras e a representante das turmas na leitura do seu pequeno texto de agradecimento. Todas entre 6 e 7 anos de idade.
Mas o principal, no evento, seria o ato de
autógrafo de todas as crianças autoras do livro Nossos Contos, por elas
produzido. Na verdade, o testemunho de um processo de aprendizagem que ao
encerrar, aparentemente, a primeira fase, a concretização da leitura e da
escrita, mostra para todos nós que as crianças desde cedo podem aprender os
conteúdos preestabelecidos pelas diretrizes curriculares.
Na apresentação se fala que “o livro Nossos
Contos é fruto de um trabalho desenvolvido pelas nossas professoras com os
seus alunos durante toda a educação infantil”, o que demonstra a necessidade do
acesso de todas as crianças desde cedo aos espaços de aprendizagem.
As duas professoras, Neide e Iraci, assim
expressaram os seus sentimentos: “Passamos o ano inteiro inspiradas na frase de
Emília Ferreiro, que diz que por trás da mão que pega o lápis, dos olhos
que olham, dos ouvidos que escutam, há uma criança que pensa”.
E acrescentam: “É com imensa alegria e
orgulho que direcionamos essas crianças para uma nova etapa de suas vidas em um
mundo letrado. Um passo à frente na construção de todos como seres sociais
ativos e conscientes na transformação de nossa sociedade”.
O livro contendo 39 contos, preservadas as
ideias, a autenticidade de cada um e feita a revisão ortográfica, está repleto
de histórias mágicas com gatos felizes e solidários; tigre que salva animais
pequenos nas florestas; cachorro que convive com os gatos em fraternidade;
dinossauros felizes; leão bonzinho com os macacos; sapos que pulam mais alto
que os prédios; borboletas que carregam as flores para enfeitar as casas;
golfinho que foge do pescador; tartarugas que correm; frutas que viram picolés
e o arco-íris que traz felicidade.
E não faltaram histórias com meninas que
querem ser professoras e princesas e as que querem ser diferentes; de meninos
perdidos na rua; o menino que vê Deus; o relógio sempre atrasado responsável
pelo atraso das crianças e até um Pokemon que faz castelos… imensos castelos.
Os contos falam do imaginário das crianças
e refletem o ambiente em que vivem e segundo a psicóloga Maria Amélia, conforme
escreveu no prefácio, “eles têm o dom de transformar o lápis em varinha de condão
e num simples toque areia vira estrela, pedra vira sol, casebre vira palácio,
plebeu vira príncipe, carroça vira carruagem, água vira lua… a fantasia é
ilimitada… agora, com o poder das palavras nas mãos, vocês têm a chave do mundo
e podem abri-lo quando quiserem”.
Emília Beatriz Ferreiro Shavit,
psicopedagoga, pesquisadora argentina e psicóloga graduada em Buenos Aires,
radicada no México, nasceu em 1937, na Argentina. Fez seu doutorado na
universidade de Genebra sob a orientação de Jean Piaget, de quem se tornou
colaboradora na Universidade de Buenos Aires a partir de 1974.(in Emília
Ferreiro e suas contribuições para Alfabetização)
Na sua trajetória acadêmica chegou a vir
algumas vezes ao Brasil e inspirou a muitos professores e algumas escolas, com
a sua concepção de aprendizagem chamada de construtivismo. Isto porque, as
pesquisas desenvolvidas por ela e outros estudiosos com relação à educação,
indicavam que as crianças têm um papel ativo no aprendizado, sendo capazes de
construir seu próprio conhecimento com os instrumentos educacionais que
estiveram ao seu alcance sob orientação dos professores.
Daí, a principal questão é retirar o foco
do conteúdo que as escolas têm a oferecer para centralizar no sujeito, ou seja
o aluno que aprende, e nas suas capacidades cognitivas necessárias ao
desenvolvimento da aprendizagem.
A questão principal está na alfabetização e
justamente na idade certa para que isso aconteça, entre cinco e sete anos.
Mesmo sem ir à escola, a criança já leva para a aprendizagem escolar uma
bagagem de conhecimento, como o domínio sobre determinado saber linguístico,
resultado de suas experiências no contexto familiar.
Emília Ferreiro aprofunda um aspecto
importante no processo de construção da leitura e da escrita mostrando que “a
criança elabora uma série de hipóteses trabalhadas através da construção de
princípios organizadores resultados não só de vivências externas, mas também
por um processo interno. Mostra também como a criança assimila seletivamente as
informações disponíveis e como interpreta textos escritos antes de compreender
a relação entre as letras e os sons da linguagem”. (In Emília F. e suas
contribuições para Alfabetização)
No Brasil, ainda temos problemas sérios com
a alfabetização das crianças, o que atrapalha o seu desenvolvimento e a
progressão no processo de aprendizagem. Persistem as práticas tradicionais dos
professores que no geral apresentam os conteúdos sem a preocupação com as
dificuldades que a criança enfrenta na decodificação da escrita e na
interpretação de textos.
Esse é um trabalho minucioso, insistente e
paciente, identificar formas e estratégias que conduzam à compreensão das
ideias e à formulação das palavras. Paulo Freire chamava de educação bancária,
aquele conteúdo depositado, decorado, copiado diante da criança sem que lhe
proporcione a forma de fazer a leitura do mundo.
O mundo começa a ser lido, compreendido,
desde as primeiras relações com ele estabelecidas, a partir da barriga da mãe.
É preciso estudar e compreender os aspectos a serem utilizados na travessia do
lúdico “à idade da razão”, quando a criança começa a criar suas primeiras
histórias e decifrar seu mundo interno.
Emília Ferreiro ressalta que “há crianças
que chegam à escola sabendo que a escrita serve para escrever coisas
inteligentes, divertidas ou importantes. Essas são as que terminam de
alfabetizar-se na escola, mas começaram a se alfabetizar muito antes, através
da possibilidade de entrar em contato, de interagir com a língua escrita. Há
outras crianças que necessitam da escola para apropriar-se da escrita”.
Há um grande déficit de aprendizagem em
nosso país, motivado pelas dificuldades apresentadas pelos processos de
alfabetização desenvolvidos pelas escolas, sobretudo as escolas públicas, que
recebem a grande maioria de alunos que mantêm pouca ou quase nenhuma relação
com a escrita.
Os resultados da Avaliação Nacional de
Alfabetização (ANA), publicados em 2015, mostraram que 22,21% das crianças no
3º ano do Ensino Fundamental só desenvolveram a capacidade de ler palavras
isoladas. Em escrita, 34,46% desses alunos não têm aprendizagem considerada
adequada.
Naquela tarde de autógrafos do livro Nossos
Contos, os pais estavam felizes pela missão cumprida, mas não tenho certeza de
que todos tenham a dimensão do que representa o passo que seus filhos deram com
tanta largueza, numa sociedade tão desigual como a nossa e no segundo ano de
pandemia que fez 614.000 vítimas e desmontou o sistema escolar.
Fiquei feliz como avó de um dos escritores
e como professora.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga.
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