segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Celso Rocha de Barros - A Biografia de Lula

Folha de S. Paulo

Fato de o biógrafo ser próximo ao biografado, em princípio, não desqualifica uma obra

As primeiras 160 páginas da biografia de Lula escrita por Fernando Morais (Lula: Biografia, Volume 1, Companhia das Letras, 2021) são dedicadas ao ano e meio entre a prisão do ex-presidente em 2018 e sua libertação no final de 2019.

O tom é diferente do resto do livro: Morais viu de perto o que narra e interpreta o que viu como alguém que estava no centro da briga, sem qualquer pretensão de distanciamento.

No fim do livro, explica que foi uma mudança com relação ao projeto original: Sentiu que não era possível, em 2021, publicar a biografia de Lula sem esse depoimento.

Mesmo nesse trecho há histórias inéditas de bastidores, inclusive uma –sobre a briga em torno de quem mandaria na mailing list de Lula no segundo turno de 2018– que sugere um erro grave da parte do PT.

Tanto quanto sei, esse é o primeiro livro a contar que Gleisi Hoffmann foi cogitada como candidata em 2018. Mas a função dessas 150 páginas é, sobretudo, de denúncia do processo de Lula e de testemunho da luta dos que ficaram ao seu lado durante a prisão.

Esse início talvez afaste leitores que não gostam tanto assim de Lula mas querem conhecer a história do principal personagem da Nova República. Se você é um desses leitores, meu conselho é que continue lendo.

Quando Morais começa a contar a história do começo, há um esforço bem maior de relacionar as histórias de seu personagem com o contexto político mais geral, que Morais conheceu bem. Aqui, inclusive, há uma diferença importante: Morais não concordava com Lula.

Nem nessa época nem por muitos anos ainda no futuro: sua perspectiva parece mais próxima à do PCB e de outros intelectuais de esquerda que continuaram apoiando o MDB por muito mais tempo que os fundadores do PT.

Por isso, Morais é muito mais sutil do que boa parte dos autores petistas em vários aspectos da história de Lula: a relação entre os novos sindicalistas e os "pelegos", por exemplo, era mais complexa e cheia de áreas cinzentas do que se pensa.

Paulo Vidal, o antecessor de Lula na presidência do sindicato, era uma figura de transição: nem um pelego nem um "autêntico". Joaquinzão, presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, apoiou os autênticos em momentos importantes.

Morais também tem muitos novos detalhes a contar sobre a tentativa do PCB de recrutar Lula, que, até hoje, tanto quanto sei, só havia sido mencionada no ótimo "O Sapo e o Príncipe", de Paulo Markun.

As informações sobre a ajuda dos sindicatos socialdemocratas europeus aos grevistas do ABC são apresentadas com nível de detalhe inédito.

Morais conta novas coisas sobre a reação da ditadura ao novo sindicalismo. A história da adesão de Antonio Candido ao PT é comovente.

O fato de o biógrafo ser próximo ao biografado, em princípio, não desqualifica uma obra. Afinal, ela viverá nas prateleiras ao lado de livros escritos por autores mais críticos. A questão é saber se as vantagens do acesso ao personagem compensaram as desvantagens do viés.

A partir do momento em que Morais começa a contar a história do começo, a resposta é, claramente, sim.

No que se refere ao longo trecho sobre a prisão de 2018, tenho dúvidas: mas tampouco sei se devo julgar seu relato do que viu em tempo real da mesma forma que discuto sua análise histórica.

 

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