Folha de S. Paulo
Fato de o biógrafo ser próximo ao
biografado, em princípio, não desqualifica uma obra
As primeiras 160 páginas da biografia
de Lula escrita
por Fernando Morais (Lula:
Biografia, Volume 1, Companhia das Letras, 2021) são dedicadas ao ano e
meio entre a prisão do ex-presidente em 2018 e sua libertação no final de 2019.
O tom é diferente do resto do livro: Morais
viu de perto o que narra e interpreta o que viu como alguém que estava no
centro da briga, sem qualquer pretensão de distanciamento.
No fim do livro, explica que foi uma
mudança com relação ao projeto original: Sentiu que não era possível, em 2021,
publicar a biografia de Lula sem esse depoimento.
Mesmo nesse trecho há histórias inéditas de
bastidores, inclusive uma –sobre a briga em torno de quem mandaria na mailing
list de Lula no segundo turno de 2018– que sugere um erro grave da parte do PT.
Tanto quanto sei, esse é o primeiro livro a contar que Gleisi Hoffmann foi cogitada como candidata em 2018. Mas a função dessas 150 páginas é, sobretudo, de denúncia do processo de Lula e de testemunho da luta dos que ficaram ao seu lado durante a prisão.
Esse início talvez afaste leitores que não
gostam tanto assim de Lula mas querem conhecer a história do principal
personagem da Nova República. Se você é um desses leitores, meu conselho é que
continue lendo.
Quando Morais começa a contar a história do
começo, há um esforço bem maior de relacionar as histórias de seu personagem
com o contexto político mais geral, que Morais conheceu bem. Aqui, inclusive, há
uma diferença importante: Morais não concordava com Lula.
Nem nessa época nem por muitos anos ainda
no futuro: sua perspectiva parece mais próxima à do PCB e de outros
intelectuais de esquerda que continuaram apoiando o MDB por muito mais tempo
que os fundadores do PT.
Por isso, Morais é muito mais sutil do que
boa parte dos autores petistas em vários aspectos da história de Lula: a
relação entre os novos sindicalistas e os "pelegos", por exemplo, era
mais complexa e cheia de áreas cinzentas do que se pensa.
Paulo Vidal, o antecessor de Lula na
presidência do sindicato, era uma figura de transição: nem um pelego nem um
"autêntico". Joaquinzão, presidente do sindicato dos metalúrgicos de
São Paulo, apoiou os autênticos em momentos importantes.
Morais também tem muitos novos detalhes a
contar sobre a tentativa do PCB de recrutar Lula, que, até hoje, tanto quanto
sei, só havia sido mencionada no ótimo "O Sapo e o Príncipe", de
Paulo Markun.
As informações sobre a ajuda dos sindicatos
socialdemocratas europeus aos grevistas do ABC são apresentadas com nível de
detalhe inédito.
Morais conta novas coisas sobre a reação da
ditadura ao novo sindicalismo. A história da adesão de Antonio Candido ao
PT é comovente.
O fato de o biógrafo ser próximo ao
biografado, em princípio, não desqualifica uma obra. Afinal, ela viverá nas
prateleiras ao lado de livros escritos por autores mais críticos. A questão é
saber se as vantagens do acesso ao personagem compensaram as desvantagens do
viés.
A partir do momento em que Morais começa a
contar a história do começo, a resposta é, claramente, sim.
No que se refere ao longo trecho sobre a
prisão de 2018, tenho dúvidas: mas tampouco sei se devo julgar seu relato do
que viu em tempo real da mesma forma que discuto sua análise histórica.
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