O Estado de S. Paulo
A traição e a falta de lealdade residem em quem abandonou seus princípios e valores, apegando-se unicamente a suas posições de poder
O ingresso do presidente Jair Bolsonaro em
seu novo partido é revelador do nível em que caiu a política brasileira. Após
uma campanha eleitoral contra a “velha política”, contra o “sistema”, clamando
por uma renovação com toques religiosos de salvação nacional, eis que o novo
“militante” do PL se curva a tudo o que dizia abominar. Qualquer traço de
coerência ou de verdade simplesmente se evapora ou, melhor, desaparece, como se
nunca tivesse existido. Coroando o ato, seu filho, senador Flávio Bolsonaro,
disse em poucas palavras tudo o que este triste evento encerra: discursou
contra o ex-presidiário Lula sem atentar, talvez, a que sua fala ocorria no
partido de um ex-presidiário, antigo companheiro dos petistas.
Em seu livro, o ex-juiz Sérgio Moro relata que o presidente Bolsonaro se regozijou com a “libertação” de Lula, expondo, para quem quiser ver, a afinidade que os une, apesar das aparências discordantes. Enfim, seu inimigo figadal estaria “livre” para enfrentá-lo eleitoralmente, numa polarização altamente benéfica para ambos os contendores. Numa encenação que lhe é própria, o atual presidente vociferou contra as “mentiras” de Moro, mostrando o quão incomodado está com um candidato que pode colocar o seu favoritismo em questão. Diria que, para o seu adversário, quanto mais golpes receber, melhor será, na medida em que atrairá para si a atenção de todos os que estão preocupados com a moralidade na política.
As pesquisas de opinião têm retratado que a
luta contra a corrupção teria deixado de ser uma prioridade nacional. Pudera,
com tantos meliantes governando o País em tempos recentes, estava se produzindo
um certo fastio, porque ninguém estava conseguindo hastear esta bandeira. O PT
e Lula abandonaram esta pauta, visto que suas administrações se caracterizaram
pelo mensalão, pelo petrolão e outros “ãos”, com seus dirigentes vagando pelos
presídios do País. Bolsonaro, por sua vez, abandona esta bandeira mais
preocupado em proteger a sua família. Nesse sentido, podese dizer que o retrato
das pesquisas é o de uma situação tida, digamos, como “natural”, numa
normalidade do tipo aterradora.
Com a entrada no jogo eleitoral de um
símbolo da Lava Jato, da luta contra a corrupção, que conseguiu condenar e
colocar na prisão figurões do mundo empresarial e político, ressurge uma
demanda adormecida, a da ética na política, uma bandeira que tinha sido jogada
no lixo. A fome, a miséria, a doença, a morte, a falta de emprego e de
expectativa são o dia a dia da imensa maioria de nossa população, algo
contrastante com o triste espetáculo de emendas parlamentares, inação
governamental, discursos vazios e mentiras descaradas, exibindo o quão pouco de
solidariedade, de honestidade e de lisura orientam boa parte dos políticos e
governantes. Para uma pessoa normal, nosso panorama é propriamente vergonhoso.
Quem pensou que esta pauta tinha passado, passou ao largo da política. O rápido
crescimento da candidatura de Sérgio Moro bem mostra isso.
Contribuição decisiva para que a indignação
moral cresça neste país, ganhando inclusive um contorno político, tem sido dada
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ),
que, por várias “razões”, têm anulado as condenações da Lava Jato e “libertado”
condenados. Subitamente, um ministro, apoiado ou não pelo colegiado, após
vários anos “descobre” uma falha processual ou formal – seja chamada de “juiz
natural”, seja que a Justiça Federal não seria a competente, mas a Justiça
Eleitoral. Provas são jogadas no lixo, como se nada tivesse acontecido. Os
“anulados” – na verdade, “absolvidos” – por este passe de mágica tornam-se
politicamente “inocentes”. É o milagre da ressurreição eleitoral. Consagra-se a
impunidade dos criminosos por ministros que se apresentam como “garantistas”.
Aliás, garantistas de quê? De que crime não é mais crime?
A despeito de tantas decisões das mais
altas Cortes voltadas contra a Lava Jato, a pauta da luta contra a corrupção
ganhou força política. Quanto mais batem nesta operação judicial, mais ela
cresce na opinião pública. Tentam vários ministros reescrever a história, como
se fossem novos escribas, quando, na verdade, estão trazendo uma outra história
à tona, a de que o crime deve ser punido, a de que a ética na política continua
vigorando, a de que a Justiça deve valer para todos, e não apenas para os
pobres e desfavorecidos.
Muitos ministros, secretários e assessores foram abandonando o atual governo. Alguns deles foram considerados traidores por saírem atirando. Ora, sair atirando é somente um modo de desqualificar a pessoa, porque o que de fato fizeram foi criticar e apresentar as razões de suas discordâncias. A verdadeira traição é a dos que descumpriram o prometido, mostrando que suas palavras de nada valiam, sendo meros instrumentos demagógicos e eleitorais. A traição e a falta de lealdade residem em quem abandonou seus princípios e valores, apegando-se unicamente a suas posições de poder. Eis o que estará, também, em jogo nas próximas eleições.
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