O Globo
Todo mundo que vive da política sabe que,
sem cinismo, não se sobrevive na atividade. O cinismo permite fazer do inimigo
de ontem o aliado de amanhã. Permite mudanças de rumo antes injustificáveis.
Permite governar. Mas, acima de tudo, permite disputar eleições. Os mesmos
marqueteiros que convencionaram que o pleito de 2018 foi da indignação com o
sistema e da escolha de um outsider agora vêm afirmando que, em 2022, a tônica
serão a inflação e a fome. Até agora, porém, está claro é que em 2022 teremos a
eleição do cinismo.
No Congresso, todo o esforço tem sido para conseguir recursos abundantes e livres de fiscalização ou de limites de qualquer natureza para o ano eleitoral — dos R$ 16 bilhões do orçamento secreto aos R$ 65 bilhões com a mudança nas regras do teto de gastos, passando pelos R$ 3,28 bilhões das emendas Pix, que pingam diretamente nas bases sem escala ou fiscalização. Mas é tudo para o bem, claro. Afinal, o Auxílio Brasil precisa de recursos, a Saúde e a Educação também. Remanejar despesas? Impossível. Falta de transparência? Intriga da extrema imprensa! Todos sabem quem está enviando dinheiro para onde, basta procurar nas redes sociais.
Em paralelo, os parlamentares trabalham
firme para flexibilizar a Lei de Improbidade Administrativa, sepultar a ideia
da prisão em segunda instância e anistiar os partidos que incluíram em suas
chapas candidatas laranjas para receber a cota do fundo eleitoral para
mulheres.
O Judiciário vem sendo tomado por uma onda
de decretações de nulidade de processos variados, daquele que provou um esquema
de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro (PL-RJ) aos que condenaram por
corrupção Eduardo Cunha (MDB-RJ) e Sérgio Cabral (sem partido). De repente,
magistrados se deram conta de que as punições a crimes como desvios de
recursos, cobrança de propina ou enriquecimento ilícito foram todas aplicadas
nas instâncias erradas, pelos juízes errados — mesmo tendo tramitado por anos
sem que ninguém tivesse se dado conta de nada.
Felizes com a virada nos ventos, os mesmos
que comemoram a prescrição dos processos de Lula e a possível aliança com
Geraldo Alckmin (de saída do PSDB) se referem a Aécio Neves (PSDB-MG) e José
Serra (PSDB-SP) como alvos de denúncia grave de corrupção, convenientemente
esquecendo que são todos alvos da mesma investigação. E por que haveriam de
lembrar, se até o juiz que comandou a Lava-Jato agora se propõe a disputar a
Presidência da República procurando aliados justamente em partidos que abrigam
investigados tanto pela sua própria operação como por outras?
Nos bastidores das negociações entre os
partidos, hoje, tudo é possível. Alckmin e Lula são só a face mais visível das
conversas que comportam composições de todo tipo — do PT com o PSD de Gilberto
Kassab e, se necessário, até com o União Brasil (fusão de DEM e PSL). Bolsonaro
entrou para o PL de Valdemar Costa Neto, que já cumpriu seu próprio tempo como
usuário de tornozeleira eletrônica ao ser condenado por corrupção e lavagem de
dinheiro no processo do mensalão. Enquanto isso, mantém no governo o PP de Ciro
Nogueira e Arthur Lira, a quem não cansa de elogiar e bajular.
De Bolsonaro a Moro, de Ciro a Lula, o
grande consenso nacional é que não deve haver limites para ganhar a eleição. A
campanha será sangrenta, o funil estreito, e quem não agregar o maior arco
possível de aliados arrisca perder uma vantagem preciosa.
Claro que não será a primeira eleição em
que isso acontece. E as pessoas podem muito bem mudar de opinião, rever
convicções, perdoar antigos adversários. Em 2018, a própria Dilma Rousseff
disse que o PT faria aliança “até com o diabo” para combater Bolsonaro. Mas,
mesmo para isso, ela achava preciso “ter uma espinha dorsal”, “ter um coração”.
Em 2022, esse conceito parece estar
vencido. Vale fingir que o dinheiro do toma lá dá cá com emendas parlamentares
é limpo. Que os limites para os gastos públicos não estão sendo arrombados. Que
não fomos alvo dos golpes baixos dos adversários. Que só os nossos inimigos
contam fake news. E que continuamos lutando contra a corrupção enquanto nos
aliamos a quem, noutro momento histórico, estaríamos trabalhando para prender.
É como se o meticuloso trabalho de
destruição institucional levado a cabo por Jair Bolsonaro tivesse dizimado
também os limites do que sempre consideramos aceitável. Talvez não haja mesmo
outra forma de devolver a política a um nível minimamente razoável ou de
sacá-la do domínio do terraplanismo. Mas é triste constatar que, entre as
coisas mais importantes que o bolsonarismo nos tirou, estão o respeito a certos
limites — e a falta de vergonha de ser cínico.
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