O Globo
As lutas que o arcebispo sul-africano Desmond Tutu e o biólogo americano Thomas Lovejoy encarnaram continuarão vivas. Os dois morreram neste Natal, deixando uma sensação de luto em quem sonha com um mundo que elimine o racismo, os preconceitos e proteja a biodiversidade. São causas irmãs. Nem sei se algum dia eles se conheceram, mas a última semana do ano começa com essa orfandade dupla. Não há futuro sem o combate às distâncias sociais entre pretos, brancos e indígenas que compõem a multiétnica nação brasileira. Não há futuro sem a proteção ambiental principalmente da Amazônia. Então Desmond Tutu e Thomas Lovejoy permanecerão como inspiração de lutas vivas.
Numa reportagem que fiz em 2017 na
Amazônia, cheguei pelo Rio Negro em Tumbira, uma comunidade modelo apoiada pela
Fundação Amazônia Sustentável no município de Iranduba, no Amazonas. A escola
linda, bem equipada, tinha o nome de Thomas Lovejoy. Os moradores sabiam quem
ele era. O americano tinha tanta intimidade com a Amazônia que aquele nome na
escola compunha a paisagem naturalmente. Com a conectividade que os
equipamentos da escola permitiam, as crianças daquela comunidade tinham aulas
com professores que estavam em Manaus, isso muito antes do esforço de estudo
online a que a pandemia nos obrigou.
Tom Lovejoy lançou sobre a Terra um olhar
novo e concebeu em seus estudos a ideia de uma conexão entre o que a nossa
visão mantém separados. A biosfera, a atmosfera, os oceanos e o solo da Terra
conectados como um mesmo sistema, cujas partes se equilibram e se afetam
reciprocamente. Gaia. Esse é o mundo visto pelos olhos de Lovejoy, no qual ele
sempre defendeu que a floresta tropical amazônica era um ponto central.
Escreveu com o cientista brasileiro Carlos Nobre sobre o risco de que o
desmatamento e as agressões constantes à Amazônia fariam a floresta atravessar
o tipping point, o ponto de não retorno, em que ela não poderia mais prestar os
serviços ambientais que hoje oferece ao planeta. O alerta ficou. Lovejoy fez
uma rede de contatos que unia cientistas brasileiros com centros de pesquisa do
mundo inteiro e dissolveu a fronteira entre ciência e ambientalismo, porque ele
mesmo foi um cientista de primeira grandeza e um ambientalista que deu
substância ao ativismo. O sentimento de orfandade de cientistas e
ambientalistas é natural neste momento. Mas o conceito fundador da
biodiversidade está consolidado. Sem a proteção através da busca incessante da
ciência e da militância incansável perde-se a biodiversidade, desequilibra-se
Gaia, morremos. Por isso ele permanecerá no efeito do seu produtivo trabalho de
mais de 50 anos na Amazônia.
A diversidade humana e a pacificação entre
diferentes, por quaisquer circunstâncias e orientações, tiveram em Desmond Tutu
um guerreiro destemido e determinado. Ele lutou contra o Apartheid, mas não só.
Continuou condenando as outras formas de apartheid causadas pela pobreza e pela
desigualdade. A sua corajosa condução dos trabalhos da Comissão da Verdade e da
Reconciliação, instalada ao fim da ditadura dos brancos na África do Sul, o
Apartheid, traz lições para os países que tentem promover uma renovação após um
período de longo arbítrio. Seu aviso de que a homofobia é igualmente
intolerável, ampliou ainda mais sua luta contra o preconceito. Suas lições de
como o silêncio diante da opressão é uma tomada de posição a favor do mal, ou a
ideia de que perdoar não é o mesmo que esquecer, nos ajudam a entender essas
travessias complexas da humanidade entre períodos de sofrimento e o recomeço.
Que futuro haverá para o mundo sem as lutas
às quais Tutu e Lovejoy dedicaram suas vidas? Não há futuro. Por isso eles vão além
de si mesmos, permanecem, inspiram e isso nos consola. O ódio racial ainda está
presente no mundo e é um mal a se combater diariamente. Mas Desmond Tutu sempre
será um manancial ao qual recorrer para alimentar o sonho da redução das
distâncias sociais e cultivar as virtudes da paz em liberdade. Que chances
terão o Brasil e o mundo sem a proteção do seu patrimônio ambiental de
biodiversidade? Não sobreviveremos à grande destruição das espécies que fazem a
vida do planeta. O Brasil terá futuro se entender que é nação multiétnica, dona
da maior biodiversidade da Terra. O bispo Desmond Tutu e o biólogo Tom Lovejoy
não são apenas perdas a lamentar em um tempo triste, são seres do futuro que
deixam lições vivas.
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