Os efeitos nefastos dessa separação não tardaram a se fazer sentir, especialmente no fosso aberto, a partir da conquista da hegemonia na esquerda pelo PT, entre a memória da política das lutas pela democratização orientadas por amplas alianças e a política levada a cabo pelo PT que desconsiderou os nexos dos temas sociais com o aprofundamento da democracia, especialmente no governo Dilma Roussef. Em equívoco igualmente grave, os governos do PT passaram a conceder primazia à conquista de posições no interior do Estado, em que logo se insinuaram práticas não republicanas na administração pública, em detrimento do seu enraizamento na sociedade civil.
Afastado de suas antigas bases sociais e
vulnerável às acusações de malfeitos de muitos dos seus quadros dirigentes,
como no caso da administração da Petrobras, o PT e seu governo se tornaram
presa fácil do impeachment, com o que ainda mais se aprofundou o afastamento ao
que sobrevivia dos tempos da política dos idos dos anos 1980. A sanha
denuncista que sobreveio com a instalação da chamada república de Curitiba
tornou o campo da política um imenso deserto, sepultando a memória das lutas
pela democratização do país e importando em reais ameaças a seu melhor fruto, a
Constituição de 88.
O futuro cede lugar ao passado, presença
latente à espreita para voltar ao proscênio, nostálgico do Estado Novo de 1937
e do regime do AI-5 de 1968, que avalia estar diante da sua hora e da sua vez a
fim de erradicar instituições, práticas e culturas que ponham em risco suas
concepções de mundo como um mercado desigual em que devem reinar os mais
fortes, um fascismo que não ousa dizer seu nome encapuzado num neoliberalismo
que diz praticar.
A emergência da pandemia com seu séquito
macabro de vítimas, quase 650 mil até aqui, que imobilizou a sociedade em
movimento de autodefesa, facilitou, na frase tristemente famosa, que a boiada
de ímpeto destrutivo encontraria livre passagem. Havia, no entanto, uma pedra
no caminho, a Constituição e seus defensores, removê-la se tornou então o eixo
central da estratégia das forças reacionárias, evidente na conspiração
frustrada que rondou o 7 de setembro. Privadas da solução golpista, tanto pela
resistência interna como pelo cenário internacional adverso, resultante do novo
alinhamento provocado pelo presidente da nação hegemônica contrário a soluções
autocráticas, essas forças passam a recorrer ao caminho eleitoral para o que
buscam amparo nos partidos políticos do Centrão, fóssil preservado das nossas
taras de formação como sociedade.
Mas, também aí encontram obstáculos, o
Centrão, como registra a nossa tradição política, se reproduz pelo voto seja
qual for a forma da sua extração, e as pesquisas de institutos respeitados têm
indicado que ele se inclina para partidos e personalidades da oposição ao atual
regime. Novos ventos sopram em direção contrária à reprodução do governo que aí
está, que ainda conta com os recursos da imensa máquina estatal que malbarata à
sua discrição, mesmo que o dilúvio seja o seu sucessor. Em sua defesa, o
passado interdita as vias para o futuro.
Nessa hora, em que não é mais noite e ainda
não é dia, cabe ao ator esconjurar as sombras do pesadelo que experimentamos,
inclusive expiando suas culpas que não foram poucas no retrocesso que purgamos.
Faltam os rituais da confissão e a promessa de que não incorreremos em nossos
erros do passado. Falta igualmente abandonar as paixões shakespearianas de luta
pelo poder, esquecidos de que foi esse grande autor quem melhor expôs as
misérias e a tragédia da busca sem freios pela glória do mando de um ou de
poucos sobre as grandes maiorias.
Ulisses Guimarães foi capaz de tecer a
frente amplíssima que nos levou à vitória contra o regime autoritário de 1964
mesmo com o sacrifício de suas legítimas ambições pessoais, e seu exemplo deve ser
invocado quando, cegos ao bem comum, não poucos embaraçam os caminhos de uma
larga frente democrática com seus apetites de província e a defesa dos seus
pequenos interesses paroquiais, no mais das vezes escorados em falsas petições
de princípio de aparência democrática.
Ainda há tempo para que a obra da razão se
estabeleça, e cabe a todos os democratas procurar o caminho da união, por que a
obra que se tem pela frente não é de pequeno porte, significa não apenas
reconstruir o que foi depredado pelos atuais governantes, mas sobretudo
emancipar o país de uma história que pesa como chumbo e tolhe seus anseios por
uma sociedade mais justa e igual.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio
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