O Globo
Numa noite perdida no tempo, em plena
ditadura, estava numa casa de reggae com Júlio Barroso, ainda antes de ele
criar o seminal grupo Gang 90 & As Absurdettes, quando a polícia entrou
jogando cadeiras para o alto.
Era comum naquele período os camburões levarem
para a delegacia, por puro sadismo, os artistas e sua plateia. Perda de tempo
total, porque entre aquele povo, embora todos de oposição aos milicos, não
havia qualquer tipo mais perigoso à ordem do regime. Nosso recurso era o
deboche.
Em fila, naquela noite, os policiais faziam
perguntas aos frequentadores da casa. Ao chegar a vez de Júlio Barroso, o
policial, que deveria ter uns 30 anos, perguntou do nada:
— Você é comunista?
— Não, sou jornalista.
A gargalhada estourou na casa de reggae do
baixo Pompeia, e a batida policial foi desmoralizada, porque logo se ouviram
gritos de autoconfissões:
— Não sou comunista! Sou dentista.
— E eu sou balconista!
A ditadura caiu pela incompetência dos
militares, abandonados pela parte civil da sociedade (os Luciano Hang da
época), e por se transformarem num ridículo diário. A ironia mata. Incendeia.
Difícil não associar Sergio Moro à alcunha de “conje”. Ou se esquecer da
pergunta matadora do ator Paulo Cesar Pereio a Leonel Brizola:
— Essa história do PTB com o PDT dá para
explicar ou é como marca de batom na cueca?
O último ditador militar, general
Figueiredo, saiu pelas portas do fundo do governo, mas antes vira sua
autoridade crispada. Acossado por carestia e inflação (parece-lhe algo
familiar?), e ainda por um mau humor recorrente (Bozo, Damares, Heleno),
Figueiredo não suportou as palavras de ordem gritadas pelos estudantes numa
manifestação contra seu governo. Para espanto até de seus companheiros de
farda, se envolveu numa briga de rua, em pleno calor de Florianópolis. Foi
salvo pela segurança atônita. Estava claro ali que a ditadura chegara ao fim.
Ele já havia dado a pista do destino de seu
governo ao vituperar sua antológica declaração de princípios. Assim como o
atual Bozo não está nem aí para a morte dos brasileiros caídos pela Covid-19,
Figueiredo deixou claro:
— O cheirinho dos cavalos é melhor (do que
o do povo).
À época, o apoio à ditadura minguara entre
a população, e os milicos só se mantinham no poder por causa das armas e de
algumas malandragens eleitorais. As pesquisas recentes indicam uma faixa de 23%
de suporte ao atual canhestro governo. É normal. No final do regime militar,
mesmo nos seus estertores, ainda existiam setores emprestando o ombro (em troca
de favores). Onde há governo, qualquer um, sempre haverá um sabujo à
disposição. Até que chegue a nova administração para também ganhar sua
simpatia.
Colocando-se como atores políticos de
qualidade, alguns pastores evangélicos, apoiados na isenção de impostos de suas
igrejas (ao contrário dos artistas que pagam na fonte suas taxas), aterrorizam
seus acólitos desavisados com o fogo do inferno para vender suas teses.
Sempre me fascinou a desonestidade
intelectual dessa turma. Agora descobri o bispo Renato Cardoso, conhecido por
ser o genro de Edir Macedo, da Igreja Universal. É uma espécie de Gepeto
pentecostal.
Ao contrário da humildade exalada por
Malafaia, que sabe onde cortar o cabelo, Cardoso vestiu a batina de teórico.
Como fez no século passado J.E.Hoover, chefe do FBI, que enxergava comunistas
até no Pato Donald, com a intenção de ganhar poder, o bispo Cardoso, sempre um
genro, em suas intervenções procura deturpar a Bíblia e colocar palavras na
boca do pobre Cristo. Ouvi-lo ou lê-lo é brincar de achar o jogo dos sete
erros.
Como qualquer stalinista ou fascista,
Cardoso parte de uma premissa errada. No caso dele, o preceito de que um
cristão não pode votar em candidatos de esquerda. Em seu programa
“Entrelinhas”, como ainda em textos no site da Igreja Universal, ele reitera
cinco pontos para demonstrar que até os santos (Olavo?) concordam com seus
prolegômenos.
Fico imaginando meu amigo Júlio Barroso
lendo patranhas tais. Segundo Cardoso, citando a sua Bíblia, “o coração do
sábio está à sua direita, mas o coração do tolo está à sua esquerda”. Por conta
disso, sugere o bispo, Jesus Cristo foi o primeiro militante anticomunista da
História.
Não é bem assim.
Na tradução do Rei James, de 1611, vista
como belíssima (inclusive porque melhora a má redação de muitos escribas da
Bíblia, lembrando que Jesus provavelmente era iletrado), para o mesmo trecho,
está:
“O coração do sábio se inclina para o bem e
o direito, mas o coração do insensato, para o mal e o injusto”.
Do mesmo Eclesiastes, versão Rei James: “No
início, as palavras da sua boca são tolice e no final são loucura maligna”.
Não ria, eles sabem o que fazem.
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