O Estado de S. Paulo
Houve uma completa evacuação das noções de bem coletivo e de colocação dos verdadeiros problemas do País
A tessitura política brasileira tem hoje
laços tênues com a arte de governar. Instalouse um desgoverno, voltado apenas
para a reeleição do atual titular e para a defesa dos grupos encastelados no
Poder. Os privilégios dos mais diferentes tipos são mantidos e, mesmo,
fortalecidos, enquanto o País padece do desemprego, da ausência de expectativas,
da baixa renda e da miséria visível nas ruas. A narrativa presidencial e
governamental, procurando velar o que acontece, se compadece na criação de
fatos midiáticos, quando não fantasiosos, de modo que a discussão se faça
dentro de uma bolha artificialmente criada e propagandeada pelas redes sociais
“amigas”.
Vacinas e campanhas de vacinação não deveriam, a rigor, ser objeto de discussão, salvo evidentemente as científicas, segundo seus critérios e protocolos. Aliás, o ambiente da sociedade é particularmente propício para que isto aconteça, visto que há adesão maciça da população à vacina, apesar de todas as tentativas governamentais para desacreditá-la. Vacinar não é um problema, salvo para pessoas em postos de comando que tergiversam sobre tudo, inclusive sobre a verdade. Mentiras ganham corpo no espaço público, produzindo o estilhaçamento do bem coletivo. O presidente empenha-se contra a vacinação de crianças, chegando inclusive a dizer que crianças não morreram devido à covid, quando os números oficiais remontam a mais de 300, uma enormidade. Isto é insano!
O ministro da Saúde, obediente, não segue
os critérios da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),
empenhando-se em criar audiências públicas inúteis para retardar esse processo.
Seu ministério chega a divulgar documento declarando que a vacina não está
cientificamente comprovada, enquanto a hidroxicloroquina teria passado por
todos os testes, como se fosse comprovadamente eficaz no combate a essa doença.
É melhor dizer com todas as letras: trata-se de um crime contra a saúde
pública, que deveria ser devidamente julgado. Um ministro médico não honra o
seu título. Ciência e saúde não podem ser objeto de politicagem.
A aprovação do Orçamento da União é mais
uma amostra do apodrecimento da política. Preliminarmente, em sua elaboração,
houve o calote dos precatórios para supostamente haver atendimento de
necessidades sociais, sobretudo em tempos de pandemia. O que se viu, no
entanto? A abertura de espaço orçamentário para novas emendas parlamentares, o
tal do orçamento secreto que, de tão sigiloso, não pode nem ser visto pela
sociedade e pelos órgãos de controle. Bilhões faltam para a saúde e a educação,
mas os parlamentares amigos têm todos os seus apetites saciados. Chegam a babar
de tão satisfeitos, enquanto imensa parte da população vive de migalhas. Claro,
nem poderia faltar o atendimento de interesses corporativos caros ao
presidente, como os policiais federais, aos quais aumento de salários foi
prometido. Condizente com tal postura, novas categorias da elite do
funcionalismo pedem isonomicamente o mesmo tratamento, deixando ao léu os
estratos inferiores. O País vive no teatro do horror.
A tradução de uma política capenga é sua
progressiva judicialização. Ou seja, como o governo e autores e partidos
políticos não conseguem negociar entre si, incapazes que são de equacionarem os
seus próprios problemas e, ainda pior, os do País, recorrem incessantemente às
instâncias jurídicas, em particular ao Supremo. Na verdade, o Supremo Tribunal
Federal (STF) foi politizado pelos próprios políticos. Resultado: os ministros
tomaram gosto de ser provocados, passando a se manifestar sobre qualquer
assunto, muitos deles agindo nos bastidores, externando suas preferências
partidárias e atuando publicamente como se políticos fossem. O círculo
tornou-se propriamente vicioso. De última instância constitucional, o STF veio
a ser uma espécie de outra instância da luta política. Discute-se quem será um
novo ministro, não em virtude de sua competência, de sua probidade, de seu
saber, mas em função de a quais interesses estaria disposto a atender. E tudo
isto em conivência com o Senado, que se mostra incapaz de atuar conforme a sua
missão.
Talvez um dos piores legados do atual
governo seja este empobrecimento da política, a sua completa evacuação das
noções de bem coletivo, de equacionamento de conflitos, de colocação dos
verdadeiros problemas do País. Tudo é motivo de tergiversação, de criação de
bolhas digitais, de invenção de falsos problemas. A articulação política
tornou-se meramente uma negociação de cargos, emendas e outras coisinhas mais.
Se isto ainda se fizesse visando à aprovação de projetos importantes para o
País, seria uma contribuição que o vício pagaria à virtude. Mas não! Servem
apenas para projetos eleitorais, tendo como único mote a manutenção do status
quo, com a garantia de que nada mude. Ministros se honra tivessem já deveriam
ter abandonado os seus cargos, como alguns fizeram, dando o exemplo de que as
coisas podem ser diferentes, sempre e quando haja vontade de mudar.
*Professor de filosofia na UFGRS
Um comentário:
A elite política hoje é uma vergonha,quer dizer,elite entre aspas e entre parênteses.
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