O Globo
‘Esta foi a semana que mudou o mundo’, disse
Richard Nixon em Xangai, em fevereiro de 1972, numa referência direta ao
livro-reportagem “Dez dias que abalaram o mundo”, de John Reed, sobre a
Revolução Russa de 1917. Nas declarações, logo após a assinatura do Comunicado
conjunto, o presidente dos EUA anunciou a construção de uma ponte imaginária
“através de 16 mil milhas e 22 anos de hostilidades”. A ponte ajudou a encerrar
a Guerra Fria e abriu caminho à integração da China ao mundo, mas não ficou em
pé para celebrar seu aniversário de 50 anos.
Sem o encontro histórico de Nixon com Mao Tsé-tung, não é fácil enxergar a transição chinesa do fracassado modelo estatista à “economia socialista de mercado” que começou em 1979, sob Deng Xiaoping. Sem o Comunicado de Xangai, base da aproximação geopolítica entre China e EUA, quem sabe quanto tempo ainda viveria a URSS?
A reviravolta de 1972, fruto da iminente
derrota no Vietnã e do gênio intelectual de Henry Kissinger, realmente “mudou o
mundo”. Ironicamente, as duas potências engajam-se, atualmente, numa espécie de
Guerra Fria 2.0, e a China alardeia uma parceria estratégica, política e
militar com a Rússia.
“Não importa a cor do gato, desde que ele
cace os ratos”, explicou Deng, anunciando o advento da liberdade para as
mercadorias e os capitais. A China pós-maoista, porém, nunca aceitou a extensão
da liberdade a seus próprios cidadãos, como foi comprovado pelo esmagamento dos
protestos na Praça da Paz Celestial, em 1989, e pelas reformas regressivas de
Xi Jinping, um quarto de século depois.
A China da Olimpíada de 2008 não é a dos
Jogos de Inverno de 2022. Na primeira, delineava-se a marcha rumo a um sistema
autoritário moderado, capaz de tolerar espaços restritos de liberdades públicas
e individuais. A segunda aboliu os direitos de Hong Kong, ameaça invadir a
república democrática de Taiwan e arrasa a sociedade e a cultura dos uigures em
Xinjiang. Contudo a implosão da ponte com os EUA não deve ser atribuída à
brutal reafirmação do sistema totalitário.
O giro estratégico de Washington começou
com Obama, acentuou-se com Trump e ossificou-se com Biden. Hoje, o paradigma de
uma rivalidade estrutural com a China tornou-se consenso bipartidário. Mas a
China de Xi Jinping não é pior, politicamente, que a miserável nação maoista de
meio século atrás. A Guerra Fria 2.0 decorre, essencialmente, da percepção
americana de uma ameaça fundamental à hegemonia alcançada no final da Guerra
Fria original.
O elemento estratégico-militar da resposta
de Washington à ascensão chinesa tem as cores da política de contenção aplicada
contra a antiga URSS: a criação do Aukus, aliança trilateral com Reino Unido e
Austrália, e a parceria privilegiada com a Índia. O elemento econômico deriva
de uma concepção oposta: no lugar do estímulo ao internacionalismo (Plano
Marshall, União Europeia), o recuo às trincheiras do nacionalismo.
De Trump a Biden, os EUA engajaram-se na
formulação de políticas industriais protecionistas e numa guerra de atrito
contra os avanços tecnológicos chineses (5G, inteligência artificial). É um
caso típico da “armadilha de Tucídides”, descrita pelo historiador da Guerra do
Peloponeso. A potência tradicional enxerga sua posição desafiada por uma
potência emergente e tenta restringi-la. Como resultado, adota uma atitude
defensiva, calcificando o sistema internacional em torno de seus interesses
nacionais.
Na Guerra Fria original, a estratégia dos
EUA baseava-se na noção de que a URSS era uma potência assentada em alicerces
de barro. Na Guerra Fria 2.0, os EUA operam sob a ilusão da irresistível
ascensão chinesa. O diagnóstico desfoca a paisagem, ocultando as fragilidades
do competidor: uma crise demográfica de longo curso, as hemorragias internas no
sistema financeiro, a desaceleração econômica, as tensões sociais que se acumulam,
as fissuras crônicas no sistema de poder político.
Ninguém celebrará o aniversário da visita
de Nixon. Da ponte que serviu aos interesses dos EUA, da China e do mundo,
resta apenas um monte de ruínas.
Um comentário:
Pois é,o tempo passa e as vezes capota.
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