Horizontes Democrático / Estado da Arte/ O Estado de S. Paulo
Eleito fazendo do que chamou de “nova
política” uma de suas bandeiras eleitorais, apesar de ter sobrevivido em vários
mandatos parlamentares recorrendo aos métodos tradicionais da “velha política”,
o presidente Jair Bolsonaro está terminando seu mandato de modo patético. Não
só terceirizou a gestão da máquina pública para o Centrão, como ainda assinou
um decreto em que conferiu ao chefe da Casa Civil a última palavra em matéria
de execução orçamentária.
O que é o Centrão? Com cerca de 230
deputados na Câmara, em uma casa legislativa com 513 parlamentares, ele é um
agrupamento de políticos sem ideologia, preocupados com seus próprios
interesses e acostumados a negociar apoio ao governante de plantão em troca de
cargos. O que importa no Centrão são ganhos patrimonialistas propiciados pelo
tráfico político de funções públicas e acesso às chaves dos cofres
governamentais. O ethos do Centrão é conformado pelo fisiologismo
como método no âmbito de um presidencialismo de coalizão. Responsável por
algumas determinantes que condicionam o sistema político e o próprio Estado,
especialmente o funcionamento de sua máquina administrativa e a alocação de
recursos públicos, o Centrão resulta de uma patologia na formação histórica
brasileira.
Como o país não dispõe de partidos grandes, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, quando um presidente da República é eleito ele não tem base partidária para apoiar sua gestão. Por isso, precisa formar uma coalisão, muitas vezes fora do espectro de partidos com que tenha algum alinhamento ideológico. Nas últimas décadas, houve uma explosão de partidos, quase todos criados apenas para vender esse apoio. Isso explica porque a Câmara e o Senado acabam, por vezes, sendo dirigidos por parlamentares medíocres. Político cuja base eleitoral se situa numa cidade onde seu pai é prefeito, além de pecuarista, o atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) é só um exemplo. Guardadas as diferenças de recursos financeiros, não discrepa muito de um Severino Cavalcanti, que também militou no mesmo partido de Lira e presidiu a Câmara, em 2005.
Apropriadores de recursos públicos em troca
de apoio, eles representam o que se chama de clientelismo. O conceito foi
cunhado por um brilhante cientista político, Victor Nunes Leal, autor de Coronelismo,
Enxada e Voto. Lançado em 1949, é um trabalho sobre o município na vida
política e administrativa. O autor analisa suas atribuições, suas receitas e
seu papel na organização policial. Estuda o sistema político vigente na
Primeira República – um período de decadência econômica dos proprietários
rurais. E mostra como as relações de poder se desenvolviam a partir do
município até chegar à presidência da República, com base numa complexa rede de
relações envolvendo compromissos recíprocos.
Partindo da premissa de que o coronelismo
resulta de um pacto entre chefes locais decadentes e um poder público que se
fortalece, Victor Nunes afirma que a atuação política local sempre foi
associada a relações hierárquicas e de dependência pessoal. Sempre dependeu de
um coronel nos grotões. Décadas antes da publicação de Coronelismo, Enxada
e Voto, os autores da Constituição de 1891 haviam se deixado levar pela ideia
moderna e liberal de submeter a sociedade brasileira aos fundamentos de leis
republicanas – ou seja, ao estabelecimento de uma vontade não arbitrária que se
aplicaria a todos os cidadãos, tornando-os efetivamente livres. O livro de
Victor Nunes, que mais tarde seria ministro do STF, aponta a distância entre o
sonho republicano dos constituintes e a realidade no interior do Brasil
profundo, onde há pobreza e concentração fundiária.
O texto foi apresentado como tese para
concurso da cátedra de ciência política na Faculdade de Filosofia da antiga
Universidade do Brasil, com o título “O município e o Regime Representativo no
Brasil: contribuição ao estudo do coronelismo”. O subtítulo, porém, acabou
prevalecendo. Por ter buscado identificar as interconexões do processo
político, em vez de explicá-lo a partir da índole do povo, como era comum até
então, a tese de Victor Nunes é a primeira análise sistêmica da vida política
brasileira. Contrapondo-se à ideia de que o coronelismo seria decorrência
natural da força da propriedade latifundiária, que se sobreporia ao poder
público, o autor afirma que aquela fórmula só expressa o compromisso entre o
poder privado e o poder público.
Segundo ele, como os coronéis vinham
perdendo peso econômico e como os municípios tinham muitos encargos e poucas
receitas, na prática o coronelismo apresentava mais fraqueza do que força. Os
chefes locais tendiam a se empobrecer na medida em que, com a industrialização
do país, a partir da década de 1940, a riqueza se deslocasse do campo para as
cidades. Pragmáticos, os coronéis sabiam que dependiam da ajuda dos
governos estaduais. Estes, por seu lado, reconheciam os chefes locais,
concedendo-lhes favores e dando-lhes carta branca nas questões relativas à sua
jurisdição, a ponto de lhes permitir nomear os funcionários estaduais – como
delegados de polícia e coletores de impostos – que atuavam em seus respectivos
municípios. Em troca, exigiam irrestrito apoio político aos candidatos do
oficialismo nos pleitos estaduais e federais.
Portanto, o cenário não é de uma simples
troca de favores entre chefes locais e um poder público estadual, mas de uma
significativa alteração na relação de forças entre proprietários rurais e poder
governamental. Segundo Victor Nunes, os chefes locais são a junção mais fraca
da cadeia de interconexões do processo político – o elo mais potente e forte
são os governadores e suas bancadas federais, que pressionam o presidente da
República e condicionam suas decisões, aprovando-as se forem atendidos. Desse
modo, se a decadência do latifúndio enfraquece os senhores rurais, o
coronelismo, paradoxalmente, lhes dá sobrevida ao lhes permitir intermediar a
distribuição de recursos estatais.
Ao estudar pioneiramente a vida pública
nacional a partir dos chefes políticos locais e dos proprietários de terras,
Victor Nunes mostra como as relações hierárquicas e de dependência pessoal
inerentes ao coronelismo corroem a democracia representativa, na medida em que a
cidadania é minada por trocas de favores financiadas por recursos
governamentais. É um cenário paradoxal. Se a primeira Constituição republicana
do país substituiu os critérios censitários pelo sufrágio (embora tenha adotado
um equivalente funcional: a exclusão dos analfabetos), sua abertura democrática
reforçou o poder dos coronéis, constituído na ligação entre os recursos
públicos e os votos dos trabalhadores sob sua dependência. Quando as bases da
representação legislativa nacional se assentam nessas relações políticas
paroquiais, o coronelismo ou neocoronelismo acaba sustentando o Centrão
federal.
Dito de outro modo: além de comprometer a
eficiência da máquina governamental, a distribuição de recursos públicos em
troca do loteamento ou da apropriação de cargos e postos típicos da burocracia
pública, sob a justificativa de assegurar a “governabilidade” no âmbito
federal, favorece integrantes do Legislativo que disputam a reeleição. Entre
outros efeitos, essa distribuição de dinheiro prejudica os opositores.
Desestimula o lançamento de adversários. E dificulta a eleição de candidatos
novos, que poderiam oxigenar o Legislativo e pressionar o Executivo a mudar os
rumos de suas políticas.
É nessa despolitização e esvaziamento da representação democrática que está a força do Centrão. Afinal, quanto mais indiscriminadas são a liberação de verbas públicas e a concessão de subsídios e de favores aos protegidos, mais eles são utilizados por parlamentares que o compõem com o objetivo de conservar e ampliar suas clientelas políticas, viciando assim a representação política. Em seu trabalho, Victor Nunes sugere que, à medida que o Brasil se industrializasse e se modernizasse, gerando uma crescente ampliação da população urbana, aumento do nível de educação e aperfeiçoamento das leis eleitorais, o clientelismo, por ser um fenômeno de sociedades não modernas, de bases rurais, tenderia a se enfraquecer. Nos centros urbanos, daria vez ao populismo, com seus esquemas igualmente clientelísticos de corrupção eleitoral.
Ainda que a redemocratização do país tenha
sido um momento histórico na década de 1980, hoje, após 33 anos de promulgação
de uma Constituição concebida para assegurar a aplicação universal das normas
jurídicas, garantir a separação entre o público e o privado, impor uma
burocracia governamental baseada nos princípios da legalidade, da
impessoalidade e da moralidade e assegurar a concretização dos direitos
sociais, ela é pouco efetiva na consecução desses objetivos. Continuamos a
viver num contexto sem crescimento, com fortes desigualdades e invasão do
privatismo nos negócios do Estado. Graças ao peso do Centrão nas coalisões
parlamentares majoritárias, as últimas matérias apreciadas pelo Congresso, por
exemplo, não foram votadas com base numa noção de projeto de Nação, mas em
razão de interesses menores e favorecimentos a determinados grupos corporativos
ou empresariais. O perfil das duas recentes indicações para o STF feitas por um
governo sustentado pelo Centrão também deixa claro o empenho das estruturas de
poder oligárquicas locais e regionais empenhadas em se perpetuar. Por fim, os
sucessivos cortes orçamentários no ensino público evidenciam o empenho desses
políticos e do governo por eles apoiado de evitar a emancipação das novas
gerações.
Nesse contexto de perda de credibilidade
das instituições governamentais e do processo legislativo, o Brasil do Centrão
– que só tem a ganhar vantagens com o atraso – é um país incapaz de empreender
as transformações modernizantes de que falava Victor Nunes Leal. Do mesmo modo,
um governo apropriado pelo Centrão jamais conseguirá ser inovador. Jamais
encarará o desenvolvimento como fenômeno dinâmico. Se caminhasse da linha da
inovação institucional e da melhoria de qualidade no gasto público, estaria
agindo contra seus interesses. Se valorizasse os interesses da sociedade,
superando com isso as trocas de favores e o prevalecimento do poder pessoal, o
governo do Centrão estaria ameaçando sua sobrevivência. Estaria serrando os
frondosos galhos em que está sentado e se fartando.
(Publicado simultaneamente em Estado da Arte, em 06 de fevereiro de 2022; https://estadodaarte.estadao.com.br/atraso-jef-clientelismo-centrao/)
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