Folha de S. Paulo
Estamos em um país brutalmente violento e
estupidamente indiferente à sua realidade
Se o Brasil não ultrapassou as condições em
que a violência ainda pode retroceder ao "normal", está entrando
nessa aberração sem volta.
Não se vislumbra preocupação coletiva com o
problema, nem mesmo para conter o empenho criminoso do governo por mais e maior
violência. Como se dá com a própria violência, é a continuidade lógica de um
percurso imposto. Explicado pela invocação de suas causas gritantes, mas
excluído o fator determinante: o passado indiferente e a indiferença do nosso
tempo à liberação da violência. O que situa as responsabilidades silenciadas.
As causas socioeconômicas da violência, legado da escravidão, acumularam-se desde a oportunidade perdida de uma abolição com perspectiva social e inteligente. A indiferença dos possuidores pelo país abaixo dos seus interesses caminhou, pelo tempo afora, com a tranquilidade assegurada por polícias e forças militares em eventuais cobranças de alguma justiça.
As favelas deram, a um só tempo, tanto a
estética da segregação urbana —a verdadeira arquitetura moderna brasileira—
como um atestado sólido da indiferença. O trabalho depreciado, a escassa oferta
de emprego e a concessão precária de escolaridade disponibilizaram população crescente
para o desemprego adulto e a marginalidade jovem.
A pobreza e a miséria são violências passíveis de incutir a sobrevivência alheia a leis e princípios. Mas o desenvolvimento de tais práticas nunca levou a um esforço verdadeiro para corrigir, em alguma medida, as suas causas também crescentes.
Os possuidores e a política que a eles
serve continuaram indiferentes. E sempre piorados: a cultura ocidental
desenvolveu desde a Segunda Guerra, sobretudo com cinema e TV, um sistema de
alta eficácia na indução de violência à vida cotidiana das próprias classes
dominantes. Nesse nível, as barreiras oferecidas pela educação pessoal, pelo
estudo, pelo convívio reduziram-se com rapidez drástica. Estão quase
desaparecidas. Deram lugar a mais violência e a mais indiferença à realidade.
Não precisamos de estatísticas para saber:
estamos em um país brutalmente violento e estupidamente indiferente à sua
realidade. Nas classes que definem a estrutura social e influem nos rumos
nacionais, claro. Os rumos da violência inspirada pela pobreza exasperante, e
armada pela indiferença, não sabemos.
Casos de repercussão como o linchamento
do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe não
negam a indiferença, antes a confirmam. Consumados ou quase, assassinatos assim
ocorrem no país todo, motivando mínimas notícias ou silêncio —não só por
provável insuficiência jornalística, mas pela indiferença generalizada à
indiferença mesma.
O clamor eclodiu dias depois do linchamento
e da indiferença policial e dos noticiários. Causou-o o lamento
comovente da mãe de Moïse, Lotsove Lolo Lavy Ivone.
A política nunca se voltou de fato para as
deformações que desenvolvem a violência. Nunca houve um esforço verdadeiro da
sociedade e de seus instrumentos para suprir a omissão da política e dos
recursos oficiais contra a violência e suas fontes reais. O que é uma violência
monstruosa. Diferente na forma, e, apesar disso, comparável aos extermínios
históricos. Centenas de milhões ou já bilhões vitimados por efeito da
indiferença histórica no Brasil.
Outros milhões
É um livro pequeno: "Invisíveis".
Uma palavra na capa, etnografia, pode afastar leitores. Seria pena. O livro da
jornalista esplêndida, professora universitária e pesquisadora Fernanda da
Escossia é "uma versão modificada" —digamos, simplificada ou
traduzida— da tese de doutorado em que nos traz um universo inimaginado: o dos
milhões de brasileiros que não têm direitos por não terem certidão de
nascimento e, portanto, nenhum outro documento.
Quem não tem documento não existe
legalmente: "Eu me sinto um nada", "Sou um zero", "Eu
me sinto um cachorro", ouviu Fernanda.
São histórias perturbadoras, lindas ou
indignantes, que Fernanda colheu de velhos, mães, filhos ao persistirem na
aventura dramática de provar ao Estado que nasceram. Logo, existem. E, com 30
ou com 75 anos, ou sem sequer saber o dia do nascimento, querem o direito de
ser vistos no mundo dos vivos —até para o direito de ter uma certidão de óbito,
e não a vala comum.
Às vezes comovente, aliviante em outras, é
mais um Brasil que "Invisíveis" revela.
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