O Estado de S. Paulo.
Qualquer reforma administrativa deve começar por este ponto: a extinção de todos os privilégios
É preciso reverter a perda de bem-estar
social derivada da captura do Estado por verdadeiros caçadores do erário. É hora
de escancarar os custos das políticas públicas, para que a sociedade possa
colocar na balança e comparar, por exemplo, uma isenção fiscal para um grupo de
empresas ao pagamento de uma transferência social. Surrada, mas inescapável, a
palavra chave é transparência. E, a partir dela, ações de governo para rever
gastos ruins e abrir espaço para o que importa.
A ideia de que a ação autocentrada pode levar ao progresso econômico tem quase dois séculos e meio. É a lógica da “mão invisível”, de Adam Smith, segundo a qual as forças da oferta e da procura seriam vetores suficientes para o funcionamento da economia, mesmo na presença do egoísmo, digamos assim. O bom funcionamento dos mercados é, de fato, a base para estimular a atividade produtiva, que gera emprego e renda.
Mas há uma condição: a existência de leis,
regras e regulamentações da vida em sociedade e da economia. É o papel do
Estado e da atividade política. Quando falham, quando a aplicação das leis é
torta, lenta ou desigual e, sobretudo, quando a mobilização e a ação de certos
grupos distorcem a alocação dos recursos públicos, então o bem-estar social
diminui.
Atualmente, há um sem-número de benefícios
tributários, regimes especiais, isenções fiscais e vantagens inscritas nos
orçamentos públicos.
Isso inclui o pagamento de salários acima
do teto constitucional remuneratório. O Estado mostrou, recentemente, que há
contracheques, no Judiciário, de mais de R$ 440 mil mensais. O salário mínimo,
hoje, está em R$ 1.212,00 e a renda média do brasileiro não passa de cerca de
duas vezes esse valor.
A chamada Comissão do Extrateto, criada em
2016 pelo Senado Federal, produziu um bom projeto para resolver o problema. Ele
foi aprovado, mas ainda tramita na Câmara dos Deputados. Essa força de setores
do alto escalão do funcionalismo público relega a último plano a busca pelo
interesse da coletividade. Prejudica, inclusive, a própria necessidade de
valorização dentro do serviço público.
Em artigo para o Valor Econômico, em 16 de
setembro de 2014 (Transparência e democracia), o economista Marcos Lisboa e eu
escrevemos: “Mancur Olson, em A lógica da ação coletiva (1965), argumentou que
a possibilidade de obter benefícios do Estado estimula a mobilização coletiva
de grupos relativamente pequenos e homogêneos (...) A natureza difusa e pouco
transparente dos custos dessas ações, no entanto, que recaem sobre o restante
da sociedade, dificulta o debate democrático e a deliberação sobre o uso mais
eficiente dos recursos públicos”.
Tal acesso privilegiado ao “poder” garante
a perpetuação, por décadas, de programas ruins, além de ensejar a criação de
outros. A apropriação de nacos do orçamento público ocorre na penumbra, onde
todos os gatos são pardos. As crianças, as famílias pobres, os desempregados, a
base do serviço público, os trabalhadores informais, os marginalizados e os
seus interesses, que deveriam ser as prioridades de uma nação ainda tão
desigual, são preteridos.
Quando não são preteridos, inserem-se no
Orçamento, em geral, sem qualquer corte naqueles gastos de péssima qualidade.
Aumentou-se, por exemplo, entre 2021 e 2022, o valor previsto para o Auxílio
Brasil (sucessor do Bolsa Família), de cerca de R$ 35 bilhões para quase R$ 90
bilhões. Uma despesa nova necessária e legítima, a meu ver. Mas nem um centavo
foi cortado em outras rubricas. Ainda, a despesa social serviu de desculpa para
mudar o teto de gastos e abrir espaço para outras demandas não relacionadas ao
social.
Para ter claro, não prego uma redução geral
e irrestrita de gastos de pessoal e de políticas de incentivo à produção.
Proponho, sim, transparência, para que a sociedade tenha conhecimento, por
exemplo, de que os descontos autorizados no Imposto de Renda podem chegar a R$
20 bilhões ao ano. Por que manter esse benefício para os ricos?
A Instituição Fiscal Independente (IFI) do
Senado Federal, há mais de cinco anos, tem contribuído para aumentar a
transparência. Seu papel, no entanto, limita-se a mostrar custos e alertar. Há
um segundo desafio, a partir disso, que é introjetar, na prática de governo e
no cotidiano da política, a dimensão da responsabilidade com o dinheiro
público. A Revisão do Gasto, ou Spending Review, pode ajudar. Amplamente
adotada no âmbito da OCDE, essa boa prática propõe-se justamente a questionar a
“base orçamentária” existente.
Vale dizer, no caso dos servidores, que há
realidades completamente distintas coexistindo. De um lado, os supersalários,
que parecem intocáveis. De outro, os baixos salários dos professores da
educação básica. Qualquer reforma administrativa deve começar por este ponto: a
extinção de todos os privilégios. Sem isso, não terá legitimidade.
Os vícios destes grupos de interesse, esta
caça ao tesouro, precisam ser combatidos com veemência. Caso contrário, a
necessidade de novos gastos públicos – já imposta pela demografia, pela pobreza
e pela desigualdade – terá de ser suprida com mais e mais carga tributária e
dívida pública. É preciso espantar os caçadores de renda para longe da
administração pública.
*Diretor-Executivo da IFI
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