Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Se quisermos mudar o país para termos um
futuro melhor, a renovação não pode se pautar pelo despreparo, insensibilidade
social e moralismo hipócrita
A história humana é repleta de eventos
paradoxais. Um dos mais comuns é a existência de momentos marcados pela busca
do novo, que, ao final, resultam em retrocessos. A Revolução Francesa gerou
Napoleão Bonaparte; a Russa, o totalitarismo de Stalin. No Brasil, multidões
foram às ruas em junho de 2013 para pedir a renovação da política brasileira.
Apostou-se muito no que viria daquele movimento cívico de massas. Porém, os
principais grupos surgidos daquele episódio demonstraram ser o inverso do que
diziam: só representam o retrocesso de tudo que o país conquistou desde a
redemocratização.
Na verdade, nunca nutri grande esperança no
discurso presente naquelas jornadas de junho de 2013, especialmente quando
ouvia as soluções propostas para os problemas do país. Estava na avenida
Paulista no dia 20 de junho, saindo do trabalho, e ouvi grupos gritando: “Sem
partido”, frase que me lembrou a Marcha sobre Roma comandada por Mussolini em
1922. Parecia mais com a metáfora do ovo da serpente, para citar o famoso filme
de Ingmar Bergman sobre as origens do nazismo. Pressenti tempos sombrios e,
infelizmente, eles vieram.
Não se trata de criticar uma parte da agenda de problemas apresentados pelas ruas, como a necessidade de melhorar os serviços públicos, mas sim o ideário vencedor desse processo político. Ele se baseava num discurso agressivo, tanto na forma como no conteúdo, contra a velha política e as instituições sociais mais relevantes, em nome de uma mistura mal combinada de um ultraliberalismo quase infantil com um conservadorismo moral modernizado pela linguagem das redes sociais. Havia um sentimento de superioridade muito grande naquelas lideranças, quase todas muito jovens, que imaginavam que sabiam tudo e que podiam se contrapor aos seus adversários de forma desrespeitosa e pouco democrática.
Passados quase dez anos, as consequências
do movimento de junho de 2013 foram a ascensão do bolsonarismo e a perda
completa de rumo daqueles que colaboraram para a chegada de Bolsonaro ao poder,
mas que depois procuraram se desvencilhar do monstro que criaram. A ignorância
histórica de Kim Kataguiri em relação ao nazismo e as frases machistas e
preconceituosas de Arthur do Val, o Mamãe Falei, sobre as refugiadas ucranianas
são apenas parte desse processo, porque é mais fácil condenar esses episódios
grotescos. Mais complicado é entender o caldo de cultura que gerou esse
retrocesso político que vai muito além do MBL e que continua com mais força no
bolsonarismo.
Vale ressaltar que, embora mais
recentemente tenham se colocado em lados opostos do poder, MBL e bolsonaristas
são filhos do mesmo movimento que eclodiu em 2013. Mais do que isso: seu modelo
mental e de forma de atuação política são muito similares. O que os diferencia
mais é que um deles, o bolsonarismo, está no poder e se aliou com aqueles que
podem mantê-lo lá às custas da destruição dos cofres públicos brasileiros e das
bases republicanas do país: o Centrão. O outro grupo perdeu o poder, mas a
maneira histérica como critica e faz oposição a outros governos, como o de João
Doria em São Paulo, prenuncia a forma como os bolsonaristas se colocariam
contra qualquer outro governante que conquiste o Palácio do Planalto nas
próximas eleições.
O entendimento do ideário vencedor das
jornadas de junho de 2013 é importante porque ele abarca, em maior ou menor
medida, uma série de grupos neoconservadores que ascenderam politicamente nos
últimos anos. Cinco elementos principais os caracterizam. O primeiro é o nítido
despreparo de suas lideranças, com pouca formação universitária e sem grande
destaque em algum campo de saber. Não por acaso uma grande parte deles procurou
gurus, sendo o mais famoso o autointitulado filósofo Olavo de Carvalho - que
estava mais para mago e astrólogo desbocado. Esse grupo valorizava o
autodidatismo na internet e nenhuma dessas lideranças foi capaz de escrever
algo sólido sobre os problemas brasileiros.
Não se sabe claramente, para além de frases
de efeito, quais soluções propõem para questões complexas do país, como
educação, meio ambiente, questões urbanas e desigualdade. Na verdade, preferem
o voluntarismo e a tentativa de desconstruir o adversário. Como parte
majoritária desse grupo, os que chegaram ao poder no plano federal produziram
um governo que é um deserto de ideias na maior parte das políticas públicas.
Pior: diante da incapacidade de seus membros, algo nítido pela leitura do
currículo de seus ministros, caminham cada vez mais para propostas populistas
em aliança com uma elite política oligárquica e patrimonialista. Ou seja:
prometeram o futuro e estão entregando o passado, com o coronelismo e tudo
mais.
O segundo elemento é o uso de uma
estratégia política claramente antidemocrática. A falta de tolerância contra as
ideias alheias é marcante, normalmente acompanhada por uma linguagem e ações
agressivas. Seus líderes ficaram famosos por tentarem destruir a reputação de
várias lideranças políticas e sociais usando o modelo de humilhação e
cancelamento das redes sociais, como fizeram com o padre Júlio Lancellotti, que
há décadas luta pela população de rua de São Paulo. Qual o conhecimento e o
engajamento desses eternos moleques em relação a esse problema?
Quem começou o obscurantismo no plano da
cultura não foi o bolsonarista Mario Frias, mas as ações de jovens do MBL. Não
se pode esquecer a aliança que fizeram com Eduardo Cunha, então chefe de uma
máfia parlamentar e envolvido em vários escândalos desde o governo Collor.
Afinal, o que importava era atacar a corrupção dos outros e chegar ao poder. Os
ataques ao Supremo também não começaram com a chegada de Bolsonaro ao poder, e
a ideia jacobina de que as ruas deveriam substituir as instituições tornou-se
um mote desde 2013, algo que os faz parecidos, ironia da história, com os
chavistas.
Pouco afeitos às práticas verdadeiramente
democráticas, essas novas lideranças também têm pouca sensibilidade social. Eis
aqui o terceiro elemento que explica as razões de menosprezarem o papel do
Estado num país tão desigual como o Brasil. Para bolsonaristas, MBL e afins, a
pobreza é causada pelos próprios pobres. Basta haver liberdade econômica, e
isso será resolvido. Não se atentam para o número gigantesco de negros mortos
nas periferias do país, não entendem a realidade do enorme contingente de
mulheres chefes de família cuja batalha pela sobrevivência é dificílima, não sabem
o quão duro é a meritocracia para quem não tem as condições adequadas para
estudar.
Desdenharam o quanto puderam do Bolsa
Família, até que o Congresso Nacional os obrigou a engolir o Auxílio
Emergencial para salvar o país do caos em meio à pandemia de covid-19. Dali
para diante, os bolsonaristas pelo menos ficaram mais espertos do que os outros
conservadorismos nascidos das ruas de 2013: descobriram que precisam dos votos
dos pobres, embora não façam nada estrutural contra a desigualdade. Talvez esse
seja o lance mais hipócrita do governo Bolsonaro, que se gaba de criar um
Auxílio Brasil que não tem nenhuma conexão com o restante das políticas
sociais.
Um quarto elemento congrega os
conservadorismos que cresceram com as jornadas de junho de 2013: a visão reacionária
em relação a várias questões emergentes do século XXI, sendo a mais importante
a questão ambiental. O meio ambiente é um tema decisivo para o Brasil nas
próximas décadas. O que fizermos nessa seara definirá nosso lugar no plano
internacional, se teremos mais investimentos externos, se comprarão nossos
produtos e se seremos respeitados pelo mundo. Errar aqui é condenar o país ao
isolamento e ao atraso. Na verdade, a visão de capitalismo desses
neoconservadorismos, com destaque para o bolsonarismo, é do século XIX:
predatória, sem preocupação social - “a ESG é uma bobagem anticapitalista”, já
ouvi de um desses pseudoliberais - e pouco antenada com as novas necessidades
do planeta.
O corolário desse ideário é um
conservadorismo moral de tipo quase medieval, alimentado pela velha e longa
tradição patriarcal brasileira. Um exemplo disso está na questão do lugar da
mulher na sociedade. O presidente Bolsonaro é claramente um exemplo de quem não
acredita na igualdade de gênero - aliás, fez um seminário no Dia Internacional
da Mulher sem participação feminina entre os palestrantes. Ele já xingou e
humilhou jornalistas, parlamentares e lideranças sociais - e seu filho, Eduardo
Bolsonaro, já colocou em dúvida a utilidade de uma engenheira numa obra. Nesse
sentido, as frases cretinas do deputado Arthur do Val comungam do mesmo
machismo do presidente da República.
Obviamente o Brasil tinha em 2013 muitos
problemas, e a sociedade precisa lutar pelos seus direitos. Mas o discurso e a
prática que venceram trouxeram muitos retrocessos e, pasmem, hoje estamos
piores do que naquela época. Se quisermos mudar o país para termos um futuro
melhor, a renovação não pode se pautar pelo despreparo, pela visão pouco
democrática, pela insensibilidade social, pela falta de ligação com o mundo
contemporâneo e pelo moralismo hipócrita representados pelo MBL e pelo
bolsonarismo. Como o país vai precisar ser reconstruído, precisaremos de ideias
e propostas melhores para os próximos anos.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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