Folha de S. Paulo
Presidente é o primeiro direitista que
consegue dar expressão popular à voz da reação porque fala aos simples
Chegamos a meados de março, e a candidatura
de Jair Bolsonaro à reeleição não derreteu como muitos previam. Nunca apostei
nessa possibilidade, como sabem os que me acompanham aqui e alhures. Ao
contrário: escrevi,
e mantenho a avaliação, que ele deve chegar competitivo ao segundo turno.
Subestimá-lo, ignorando a arena
sanguinolenta das redes sociais em que também se trava a disputa, foi o erro
mais tolo cometido em 2018. Por "competitivo", entenda-se: o
presidente pode ser reeleito.
Lula parece ter a mesma avaliação. Em encontro com lideranças femininas na manhã desta quinta (10), foi direto: "A luta não será fácil. Não existe essa do ‘já ganhou’. Eleição, a gente só sabe o resultado depois da apuração".
A fala do petista apela ao risco real da
derrota para justificar as alianças, inclusive com quem defendeu o
impeachment. O
provável vice na chapa, Geraldo Alckmin, foi escolhido antes que este
definisse o partido em que vai ingressar.
Não é o PSB a indicar a disposição de Lula
de fazer uma frente tão ampla quanto possível pela governabilidade, mas a
própria figura do ex-governador de São Paulo, que não tem como se confundir com
a caricatura de um radical. Se a empreitada der certo, ele não será um mero
adorno no Palácio do Jaburu.
Lula nunca acreditou que Bolsonaro seria
tragado ou pela ruindade do seu governo ou por vagas de opinião. Poucos
políticos têm um ouvido aguçado como o seu para ouvir a voz das ruas —mesmo a
das ruas virtuais de hoje em dia.
O petista deve ter percebido uma evidência
sobre a qual a nossa sociologia até agora não se debruçou: a direita brasileira
nunca deu à luz uma personagem com as características do atual presidente.
Assim como a esquerda, antes, nunca tinha produzido um... Lula.
Em muitos aspectos, os embates ideológicos
brasileiros, e assim foi até a redemocratização, eram um confronto de elites
mais ou menos letradas. Lula foi o primeiro esquerdista brasileiro cuja
linguagem era realmente compreendida pelo chamado "chão da fábrica",
como se dizia ao tempo em que emergiu como liderança. Não cabem aqui as
minudências, mas o marxismo nativo das décadas de 70 e 80 torcia o nariz para
ele e para o que considerava suas "simplificações".
Tanto o conservadorismo como o reacionarismo
brasileiros, que entendo distintos —mas as diferenças são irrelevantes para o
que vou apontar—, sempre foram um tanto envergonhados. Esse pudor, é certo,
poupava os ouvidos mais
sensíveis das barbaridades que Bolsonaro engrola, mas a delicadeza do
discurso era só a máscara suave da truculência.
Alguém duvida de que Gama e Silva teria
engulhos caso ouvisse um discurso do "Mito"? Ele não teve, no
entanto, nenhuma dificuldade de redigir o AI-5, o monstrengo legal que punha em
letra impressa a "ditadura escancarada".
Ainda que ambos possam repudiar o paralelo
—se acontecer, é sinal de que não terão entendido o texto, e Padre Vieira diria
que a culpa também pode ser minha—, a verdade é que Lula ainda é o político
brasileiro que traduz com mais clareza as aspirações de justiça social, de
redenção dos oprimidos, de uma vida mais digna para os pobres.
Bolsonaro, sua nêmesis, conseguiu dar
expressão popular à voz da reação porque, goste-se ou não, consegue falar para
os simples. Quer dizer que são iguais, mas em campos opostos? Não. Isso explica
por que tem
faltado povo à tal "terceira via".
Olhemos a pauta do atual presidente e as
figuras que já se alinham em defesa do seu segundo mandato. Há ali, com raras
exceções, um Brasil primitivo, alheio à ciência e às urgências do mundo
moderno, muito especialmente às ambientais. São o seu suporte material, mas sua
resiliência não vem daí. Bolsonaro ainda pode vencer uma eleição democrática
porque conseguiu dar expressão popular ao ódio à democracia.
Convenham: isso, até agora, não foi
devidamente compreendido pelo processo político. Se a democracia sobreviveu a
seu primeiro mandato, é improvável que resistisse a um segundo. E ainda há quem
repudie uma política de alianças ou que insista
na farsa de que Lula e Bolsonaro são males opostos, mas combinados. Uns e
outros não entenderam nada.
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