sexta-feira, 11 de março de 2022

José de Souza Martins*: O Estado suspeito

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

É preocupante que cheguemos às eleições de 2022 sem que as estruturas paralelas do poder abusivo e corrupto tenham sido devidamente investigadas, denunciadas e neutralizadas

Menções a corrupção e suas variantes têm sido frequentes no Brasil, as mais recentes relativas ao transporte, pela FAB, de parentes e amigos de membros do governo. Iniciativas têm sido tomadas para regulamentação tópica de anomalias como essa. Mas só essa. O resto permanece.

Há ainda os casos de uso de dinheiro público para viagens de membros do governo nem sempre claramente justificadas como sendo viagens por razões propriamente de Estado. É tal a falta de clareza que pesa sobre elas a suspeita de objetivos que não as justificam.

Ainda não se fez uma pesquisa consistente sobre a história da corrupção no Brasil para explicar-lhe as causas, as metamorfoses e a persistência. Pesquisa que abranja desde a época colonial, quando ainda não se usava essa palavra e o que hoje chamamos de corrupção ainda era outra coisa, mas era.

Um imbricação de interesses e benefícios do que o tempo distinguirá como coisa privada e coisa pública. Foi entre nós lenta a gênese dessa distinção, ainda incompleta. Temos formas de corrupção de que os beneficiários nem têm consciência de que o é.

Até os dias de hoje, em que a corrupção aparece disfarçada nos vestígios de arcaicos privilégios estamentais dos que acham que ter poder é para usá-lo em benefício próprio, dos parentes, dos amigos e dos amigos dos parentes. O serviço público do poderoso é aqui, com mais frequência do que percebemos, para certos políticos, apenas um dever residual.

Corrupção é uma prática reacionária e de direita, de menosprezo e deboche pelo povo, que ocasionalmente pode ser uma tentação para também quem se chama de esquerda e pensa que o é. A corrupção não tem partido nem pátria, nem classe social.

O banqueiro John Mortlock (1755-1816), que foi 13 vezes prefeito de Cambridge, tinha um lema: “O que vocês chamam de corrupção, eu chamo de influência”. Aqui no Brasil, um certo Adhemar de Barros, governador de São Paulo, que se promovia fazendo obras públicas, ia mais longe. Seus cúmplices, à denúncia de que era corrupto, retrucavam: “Rouba, mas faz”. O eleitorado concordava.

No Brasil, o fator primordial da corrupção é a dupla estrutura política do Estado, isto é, a dupla validade dos preceitos de conduta em relação à chamada “coisa pública”: a legalidade da lei e a legitimidade do costume.

Não é casual que as leis sejam aqui feitas já de olho nas brechas dos jeitinhos que protejam os inocentes que o são e acabam beneficiando os que não o são. O que deixa sem clareza a culpabilidade no uso abusivo de recursos e meios públicos.

É preocupante que cheguemos às eleições de 2022 sem que as estruturas paralelas do poder abusivo e, portanto, corrupto tenham sido devidamente investigadas, denunciadas e neutralizadas.

Um medidor da corrupção na política brasileira é a própria língua que falamos e até escrevemos. Tomo como referência três expressões que na sonoridade parecem as mesmas. No entanto, querem dizer coisas substancialmente diferentes e até antagônicas: servir à pátria, servir a pátria e servir-se da pátria.

O militar tem o dever de servir à pátria. Mas o cidadão íntegro também. Há casos, porém, em que a pátria é servida a poderosos na bandeja de benefícios que de fato faltam a quem mais deles precisa.

A política de incentivos fiscais para desenvolvimento de certos setores, como ocorreu com os que foram destinados ao desenvolvimento econômico da Amazônia Legal, podem ser questionados nessa perspectiva. Foram casos de privatização legal de recursos que em princípio deveriam ser destinados ao serviço do Estado e ao bem comum.

E, ainda, os casos dos que se servem da pátria, do que não é deles, mas de todos, para conveniências de ordem pessoal e familiar tratando a organização do Estado como extensão da estrutura de parentesco.

Essas diferentes posturas em relação ao que é da pátria e o que é do cidadão podem coexistir. Mas, que ordenadas na perspectiva dos valores, indicam uma tendência no crescimento da ousadia e da correlata naturalização do que pode ser definido como abuso da invasão do que é público pelo privado. Portanto, corrupção.

O período pós-ditatorial difundiu variantes de uma nova modalidade de corrupção. Na verdade, revitalização de modalidades arcaicas de corrupção embutidas na própria estrutura do Estado brasileiro, a das pequenas facilidades e favores. Não parecem corrupção, não estão condenadas como tal nas leis e códigos. Estão apenas no permissível, no tolerado, no não criminalizado. O Estado brasileiro, no entanto, pelas ambiguidades das normas e dos costumes, é corruptível e corruptor.

Servir a pátria e servir-se da pátria combinaram-se para desservir a pátria. A forma da lei para demolir o espírito da lei.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante”(Editora Unesp, 2021).

 

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