Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
É preocupante que cheguemos às eleições de
2022 sem que as estruturas paralelas do poder abusivo e corrupto tenham sido
devidamente investigadas, denunciadas e neutralizadas
Menções a corrupção e suas variantes têm
sido frequentes no Brasil, as mais recentes relativas ao transporte, pela FAB,
de parentes e amigos de membros do governo. Iniciativas têm sido tomadas para
regulamentação tópica de anomalias como essa. Mas só essa. O resto permanece.
Há ainda os casos de uso de dinheiro público
para viagens de membros do governo nem sempre claramente justificadas como
sendo viagens por razões propriamente de Estado. É tal a falta de clareza que
pesa sobre elas a suspeita de objetivos que não as justificam.
Ainda não se fez uma pesquisa consistente sobre a história da corrupção no Brasil para explicar-lhe as causas, as metamorfoses e a persistência. Pesquisa que abranja desde a época colonial, quando ainda não se usava essa palavra e o que hoje chamamos de corrupção ainda era outra coisa, mas era.
Um imbricação de interesses e benefícios do
que o tempo distinguirá como coisa privada e coisa pública. Foi entre nós lenta
a gênese dessa distinção, ainda incompleta. Temos formas de corrupção de que os
beneficiários nem têm consciência de que o é.
Até os dias de hoje, em que a corrupção
aparece disfarçada nos vestígios de arcaicos privilégios estamentais dos que
acham que ter poder é para usá-lo em benefício próprio, dos parentes, dos
amigos e dos amigos dos parentes. O serviço público do poderoso é aqui, com
mais frequência do que percebemos, para certos políticos, apenas um dever
residual.
Corrupção é uma prática reacionária e de
direita, de menosprezo e deboche pelo povo, que ocasionalmente pode ser uma
tentação para também quem se chama de esquerda e pensa que o é. A corrupção não
tem partido nem pátria, nem classe social.
O banqueiro John Mortlock (1755-1816), que
foi 13 vezes prefeito de Cambridge, tinha um lema: “O que vocês chamam de
corrupção, eu chamo de influência”. Aqui no Brasil, um certo Adhemar de Barros,
governador de São Paulo, que se promovia fazendo obras públicas, ia mais longe.
Seus cúmplices, à denúncia de que era corrupto, retrucavam: “Rouba, mas faz”. O
eleitorado concordava.
No Brasil, o fator primordial da corrupção
é a dupla estrutura política do Estado, isto é, a dupla validade dos preceitos
de conduta em relação à chamada “coisa pública”: a legalidade da lei e a
legitimidade do costume.
Não é casual que as leis sejam aqui feitas
já de olho nas brechas dos jeitinhos que protejam os inocentes que o são e
acabam beneficiando os que não o são. O que deixa sem clareza a culpabilidade
no uso abusivo de recursos e meios públicos.
É preocupante que cheguemos às eleições de
2022 sem que as estruturas paralelas do poder abusivo e, portanto, corrupto
tenham sido devidamente investigadas, denunciadas e neutralizadas.
Um medidor da corrupção na política
brasileira é a própria língua que falamos e até escrevemos. Tomo como
referência três expressões que na sonoridade parecem as mesmas. No entanto,
querem dizer coisas substancialmente diferentes e até antagônicas: servir à
pátria, servir a pátria e servir-se da pátria.
O militar tem o dever de servir à pátria.
Mas o cidadão íntegro também. Há casos, porém, em que a pátria é servida a
poderosos na bandeja de benefícios que de fato faltam a quem mais deles
precisa.
A política de incentivos fiscais para
desenvolvimento de certos setores, como ocorreu com os que foram destinados ao
desenvolvimento econômico da Amazônia Legal, podem ser questionados nessa
perspectiva. Foram casos de privatização legal de recursos que em princípio
deveriam ser destinados ao serviço do Estado e ao bem comum.
E, ainda, os casos dos que se servem da
pátria, do que não é deles, mas de todos, para conveniências de ordem pessoal e
familiar tratando a organização do Estado como extensão da estrutura de
parentesco.
Essas diferentes posturas em relação ao que
é da pátria e o que é do cidadão podem coexistir. Mas, que ordenadas na
perspectiva dos valores, indicam uma tendência no crescimento da ousadia e da
correlata naturalização do que pode ser definido como abuso da invasão do que é
público pelo privado. Portanto, corrupção.
O período pós-ditatorial difundiu variantes
de uma nova modalidade de corrupção. Na verdade, revitalização de modalidades
arcaicas de corrupção embutidas na própria estrutura do Estado brasileiro, a
das pequenas facilidades e favores. Não parecem corrupção, não estão condenadas
como tal nas leis e códigos. Estão apenas no permissível, no tolerado, no não
criminalizado. O Estado brasileiro, no entanto, pelas ambiguidades das normas e
dos costumes, é corruptível e corruptor.
Servir a pátria e servir-se da pátria
combinaram-se para desservir a pátria. A forma da lei para demolir o espírito
da lei.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a
incerteza do instante”(Editora Unesp, 2021).
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